Comecei a manhã com um café curto e um Nurofen no bucho. O barulho do vizinho de baixo ensurdeceu-me, fazendo-me acordar com uma dor de cabeça feroz. Ou, pelo menos, quero acreditar que é assim…
Nem a noite me traz calma. Nem a noite me dá sossego. Queria não acordar, pelo menos hoje, com uma vontade certeira de ligar para ti, de te mandar uma simples sms a perguntar como estás…
Mas o aperto no peito ainda permanece e o coração molda-se numa bola trágica de mágoa e dissabor.
Levei a chávena de café para a janela e observei a estrada a ficar molhada pelas gotas da chuva. A chuva era leve, constante, um ritmo sedutor de tão lento e promissor, a tragar-me a alma. Bebi um gole deixando que o líquido de sabor amargo, mas reconfortante, me escorresse garganta abaixo na tentativa de me aquecer. Nunca ponho açúcar no café e, na verdade, costumo bebê-lo frio. Por isso, como é que algo tão intemperado e frio podia de facto reconstruir-me a alma?
Pus música a tocar, acendi uma vela, acendi, por sua vez, o cigarro na sua chama e voltei novamente para a janela. Ainda chovia, o mesmo ritmo, a mesma vida a desenrolar-se nos caminhos daqueles que percorriam a rua e o passeio, com o destino bem marcado como as marcas dos pés vincadas invisivelmente nas pedras da calçada. Ou então, com a ilusão de tal, porque nestas coisas da vida e do destino são esses dois conceitos que têm permissão para tudo e nós apenas nos iludimos de que podemos alguma coisa.
Olhei uma vez mais para o telemóvel, pousado na mesa atrás de mim, e engoli em seco. Expeli o fumo e vi-o por entre a nuvem cinzenta, como o meu estado de espírito. Já viste? Já te desta conta de como fico quando não te tenho por perto? Refugio-me nos vícios. Encontro paz em tudo aquilo que me faz mal. Café, cigarros, solidão. E tu, tão longe…
Já nem me lembro, sinceramente, de quem foi a decisão da partida, afirmando o cruel paradigma de que seria melhor assim.
Ai o ser humano e a sua mania de que sabe tudo, sem sequer se aperceber de que, na verdade, não sabe praticamente nada!
Sei que estou a errar, sei que já é um erro a minha fraqueza e incerteza em saber se te hei-de ligar ou não. E sem ser preciso muito, percebo que se o quero, se o sinto, é isso que devo fazer. Não sabemos quando pode ser o último minuto, o último momento. Um dia, pode ser tarde. E onde ficam as palavras não ditas? O amor não declarado? A paixão não consumida?
Pego no telemóvel e acedo aos rascunhos – o eterno e fiel protótipo de uma mensagem já escrita, guardada na indefinível indecisão. Coloco o teu número que sei de cor e carrego no botão “enviar”. Sem ser preciso constatar em voz alta, sei que acabei de ficar refém de outro beco sem saída. Amanhã estarei aqui novamente, a beber outro café curto, a acender mais um cigarro no pavio quase apagado da vela e a esgotar a carteira de Nurofen, na tentativa de curar a dor de cabeça que, como a do meu coração, é crónica. Estarei pronta para lidar com as consequências. Pelo menos, não fico com o peso de nem sequer ter tentado resgatar-nos do abismo, mesmo que estejamos condenados a cair nele, sem retorno.
Por: Nádia Carnide Pimenta (Escritora e Autora das obras, “Da Ponte P’ra Cá” e “Diamante do Sul”)
Imagem Por, Vilhelm Hammershøi, “A Room in the Artist’s Home in Strandgade, Copenhagen, with the Artist’s Wife” (Statens Museum for Kunst)
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