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O som de uma melodia assobiada, despertou o feiticeiro pouco a pouco, desfrutando do som. Porém, abriu repentinamente os olhos quando se perguntou quem o fazia.

— Acordou!

O feiticeiro olhou para o lado, dando conta de que não estava nos seus aposentos, com a jovem mulher sentada na cadeira da secretária daquele pequeno quarto, levada até junto da cabeceira da cama. Surpreendentemente, ela continuava ali.

— Sente-se melhor?

Tentou sentar-se e de seguida pôr-se de pé para a arrastar para fora dos seus domínios. Quis conjurar as suas chamas, afastá-la de si ao vê-la tão perto e de sorriso cândido no rosto, mas só teve tempo se apoiar num braço e apertar as têmporas.

Ouviu-a mexer, mas percebeu que não se aproximou. Ele sentia-se demasiado fraco para se mover. Olhou para o seu lado direito, para as portas de vidro que davam para uma grande varanda, vendo grossas gotas deslizar pelo vidro, tornando a noite ainda mais escursa. Como odiava chuva.

— Sai — ordenou novamente.

— Não tem de agradecer.

O feiticeiro não soube o que lhe responder, surpreendido com a sua resposta. Aquela mulher, definitivamente, não era comum. Criara uma poderosa ilusão de forma a enganar-lhe os sentidos, para conseguir com que desaparecesse de uma vez por todas, mas continuava ali, inabalável.

Afastou a mão dos olhos quando a ouviu mexer novamente. Estava de pé, a caminhar em direção à lareira, entre a porta do quarto e a de entrada para a casa de banho privada, não muito longe do roupeiro de mogno.

— Desmaiou nas escadas após o espetáculo de chamas. — A jovem riu-se, parando em cima do tapete encarnado, atirando outro pedaço de madeira para a lareira apagada. — Trouxe-o para aqui. Foi o primeiro quarto que encontrei. Suponho que seja o seu, pela falta de calor humano. — O feiticeiro sentou-se a muito custo, observando-a agachada. — Não tem por aí fósforos? Talvez umas…

Antes mesmo da rapariga conseguir terminar a frase, já ele acendia a lareira, silenciando-a para evitar que a sua cabeça continuasse a latejar. Já lhe bastava a tempestade.

— Por que me ajudaste?

Viu-a levantar-se e limpar as mãos às calças castanha, sujas de lama e molhadas.

— Assim também serve. — Mostrou um grande sorriso ao ver as chamas fortes. — Obrigada.

— Responde! — mandou, numa voz que mostrava severidade, assustando-a um pouco. Notou pelo paço que dera para trás. — O que queres?

— Eu apenas… Achei que precisasse de ajuda.

— E?

— E… — Observou como as suas bochechas ganhavam alguma cor. — seria uma forma de me permitir ficar e abrigar da chuva. Depois seguirei viagem.

O quarto ficou em silêncio, escutando-se somente o crepitar da lenha e as grossas gotas de chuva a bater no vidro das portas duplas e da janela.

A jovem, mesmo intimidada pela presença do feiticeiro — o qual não era tão assustador inconsciente, apesar de pesado —, obrigou-se a encará-lo, encontrando dois profundos olhos castanho-escuros e não negros como vira. Eram de uma cor simples. Isto se comparado com as roupas luxuosas e ricos tecidos que envergava.

A jovem olhou para as botas negras enlameadas e para as calças completamente sujas, envergonhando-se pelo seu estado. A camisola verde, de um tom mais escuro que os seus olhos, escapava minimamente, se fechasse os olhos às mangas molhadas e acastanhadas.

Levantou novamente o queixou quando ouviu o farfalhar dos lençóis, deparando-se com o feiticeiro a sair da cama. Prendeu o cabelo loiro, desviando vários fios rebeldes de frente da tez morena.

— Qual é o teu nome?

— Lyla Terun, senhor. É esse o meu nome. — O feiticeiro levantou-se da cama e ela caminhou até junto dele. — Espere! Ainda não devia…

— Vais-te embora amanhã.

Ficou verdadeiramente surpreendida com aquelas palavras.

— Então, eu posso…

— Ficas neste quarto. — Agarrou no seu manto, cuidadosamente colocado em cima da secretária poeirenta. Agitou-o levemente para o limpar. — Tens roupas nos armários. E estás proibida de entrar em qualquer local sem ser este quarto.

— Percebi. — Lyla sorriu novamente. Só perto é que o feiticeiro se apercebia do quão sincera ela era. — Espere! — chamou repentinamente. — Não sei o seu nome.

— Não precisas dele.

— Por favor! — insistiu, sem dar tempo a que o feiticeiro se aproximasse da porta. — Você sabe o meu.

— Posso ser anfitrião à força, mas ao menos tenho direito a saber quem permito que permaneça na minha casa.

— E eu sou uma hospede voluntária, mas ao menos tenho o direito de saber o nome do meu anfitrião, não? — Lyla riu-se, deixando-o de sobrancelha erguida.

Ela viu-o entreabrir os lábios, antes da pesada porta de madeira se fechar e ecoar por todo o edifício.

Ela parecia não teme-lo.

Por que hesitara?

Talvez fosse o seu sorriso.

Ninguém sabia o seu nome. Por que quase o dissera àquela mulher?

Quase o fizera sorrir também.

Pensou que talvez fosse feiticeira, mas não sentia qualquer poder vindo dela… Pelo contrário.

*

O feiticeiro não conseguiu descansar. Estava com poucas horas de sono e a tempestade não ajudou. Não conseguiu obrigar-se a descansar por mais que fechasse os olhos. Já não se sentia tão mal como na noite anterior, mesmo com o cansaço permanente, o que não o impediria de fazer os seus deveres. Teria tempo para descansar quando a chuva volta-se às suas terras.

Por muito que se tentasse enganar, sabia perfeitamente a verdadeira razão pela qual passara noite desperto, fitando as paredes escuras de pedra. Fora ela. Aquela mulher. Lyla Terun. E não foi apenas a sua presença que o incomodou.

Também ela não parecia desposta a dormir tanto como aparentava. Era cedo quando a escutou percorrer os corredores do castelo, mexendo em objetos, maçanetas, reclamando pelo facto de as portas estarem trancadas. Quando ouviu um pequeno guincho da sua parte, quase se levantou para verificar o que se tinha passado, para depois a ouvir praguejar, seguido de o tilintar de um objeto, acalmou-se e esperando que o coração fizesse o mesmo.

A exploração não durou muito tempo. No entanto, ele sabia perfeitamente que não era esse facto que o incomodava. Bastava a sua presença.

Talvez porque nunca tivera ninguém no castelo.

Talvez porque fora simpática com ele.

Talvez porque o seu cabelo escarlate lhe recordavam a sua maldição.

Atou o cabelo à fita de couro, não sem antes cortar as pontas que lhe passavam os ombros. Ficava sempre impressionado com a velocidade a que este crescia. E impressionava-o ainda mais como no dia anterior a sua preocupação inicial fora a sua chuva, para passar a ser uma mulher obstinada, a mesma que encontrou na sua longa e  monocromática sala de estar, tentando acender a lareira.

Esfregou a face ao vê-la colocar alguns toros de madeira. Acreditava que feiticeira não era. Acendeu o fogo sob a pouca lenha coloca no local, espantando-a. A jovem deu um passo atrás para depois olhar para a porta e sorrir para o seu anfitrião.

— Obrigada. Outra vez. — Riu-se novamente, envergonhada.

— Não está assim tanto frio para ser necessário acender a lareira.

Na verdade, para ele, não fazia qualquer diferença a temperatura das divisões. A sua magia de fogo mantinha a sua temperatura corporal constante.

— Achei que seria agradável aquecer esta sala. Está um pouco fria. — O amplo espaço em tons castanhos, era largo e frio, desprovido de qualquer vida e alegria, como o feiticeiro bem sabia. — Ou talvez eu esteja a ficar doente depois de toda a chuva que apanhei.

Ele não entendia como ela ainda podia sorrir. Se tal fosse verdade, os últimos humanos que vira cair de cama com febres altas, estavam naquele momento a sete palmo abaixo do chão. Se ela esperava que ele a fosse ajudar, podia mudar de ideias o mais rapidamente possível. Pois mesmo que quisesse, não conseguiria fazê-lo.

— Então é melhor ires procurar abrigo e ajuda de um curandeiro na aldeia. Não há nada aqui que te consiga tratar.

Ao concluir a própria frase, apercebera-se de que ela já o devia ter feito. Não entendia como ainda permanecia no seu castelo. E muito menos a sua atitude. Por que não a expulsava, simplesmente? Força bruta resolveria a questão rapidamente.

— Mas eu ainda me sinto bem.

— Ótimo, então. Significa que poderás ir embora.

Olhou para o seu grande relógio antes de caminhar para junto de uma velha poltrona de couro, junto a uma grande pilha de livros velhos. Era cedo, mas havia o que fazer. Ia pegar num dos livros quanto deu pela jovem a curtos passos de si. Só então reparara que trazia uma indumentária maior do que ela. Roupas suas, antigas, das quais nem se recordava ter.

— Podia ficar um pouco mais? Por favor?

— Não. — Procuro entre os diversos livros, achando rapidamente aquele que procurava.

— Por favor! Eu só preciso de comer algo, restabelecer forças e vou-me embora.

— Disseste algo parecido ontem.

Pegou no livro e limpou a capa, esperando que ela não volta-se a insistir no assunto. Porém, quando se voltou, viu-a no chão, de joelhos. Aquilo fê-lo recuar um passo.

— Eu não como há dias. Por favor, por piedade. A minha mente precisa de repouso e o meu corpo de alimento. Não lhe peço mais do que isso. Não posso perecer sem antes cumprir com o meu sonho.

Quis perguntar-lhe qual seria e, talvez, tentar entender a sua teimosia e perseverança. No entanto, também a queria fora da sua casa, da sua vida por si só arruinada. Não desejava arruinar a dela. Não quando ela o recordava ele próprio, em tempos, com o olhar cheio de vida e esperança.

— Podes comer o que te apetecer e depois ir embora.

Os olhos de Lyla brilharam intensamente. Não lhe queria dar esperanças ou transmitir qualquer ideia errada, pois não tencionava acatar qualquer outro pedido e a jovem sabia disso.

Por momentos, pensou que a sua ousadia acabaria com a sua vida, mas ele não o fez. Ter-se-ia apiedado? E num ímpeto, num impulso frenético e de felicidade, levantou-se rapidamente e rodeou-lhe o tronco largo e os braços.

— Muito obrigada!

Ele não imaginava o quão agradecida Lyla estava, tal como ela não fazia ideia de que ninguém se aproximava daquele homem, assim, em muitos anos. Ele repelia as pessoas, não as aproximava.

O feiticeiro não retribuiu o abraço, não se mexeu e esperou que ela se inteirasse do que fizera, enquanto ele permanecia de olhos postos nos seus cabelos encarnados, surpreso pelo ato. Ela soltou-o sem dizer uma só palavra e afastou-se com vários passos para trás, retirando diversos fios de cabelo da frente da face oval.

Lyla perdera a fala. Não sabia o que dizer, nem como se desculpar pela ousadia. Sentia o rosto quente e a vergonha a devorar-lhe as entranhas.

— Obrigada, mais uma vez.

Foi tudo o que a jovem conseguiu dizer antes de sair da sala num passo apressado. Não demorou muito até se voltar a ouvir os seus passos, mas mais cuidadosos. Espreitou para dentro da sala e mostrou um sorriso envergonhado.

— Onde fica a cozinha, exata… mente…

Ele já não estava lá e ela suspirou, vendo-se novamente sozinha.

O toque dela era quente.

Ele sentia que não havia fugido. Pelo menos queria acreditar que não, depois da forma como saíra da sala de estar, utilizando a sua magia e desaparecendo. Fechou a porta da longa biblioteca, trancando-a. Queria ficar sozinho.

O dele era frio.

Queria-a longe dele. Nada mais do que isso. Conhecera-a na noite anterior, numa das noite de mais vulnerabilidade e ela queria quer deixá-lo mais débil.

Em conjunto eram perfeitos.

E ela, não entendia por que ele a evitava. Talvez a odiasse.

Helena S. Moreira

Escritora e autora do livro “Coração de Diamante” e Novela “Feiticeiro das Chamas: Capitulo 1, 2, 3 e 4

Imagem Por, Francisco de Goya, “La Leocadia” (Museo del Prado)

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