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The important thing is being aware one exists

Jean-Luc Godard 1Godard, JL. (1972), Godard on Godard. New York: Da Capo

Para Jean-Luc Godard o cinema assumia-se como uma nova forma de olhar2Casetti, F. (1998), Inside the Gaze: The Fiction Film and It’s Spectator. Bloomington: Indiana University Press.. E este foi, de certa forma, um dos seus maiores legados: uma nova forma de realizar, de ver e pensar o cinema. Godard recusava-se a acatar as fórmulas e convenções clássicas de Hollywood, assentes num conceito de transparência narrativa conseguida recorrendo a uma gramática narrativa estandardizada, facilmente reconhecível e descodificada pela audiência3Sterritt, D. (1999), The Films of Jean-Luc Godard: Seeing the Invisible. Cambridge: Cambridge University Press.. O resultado é um cinema mais complexo e infinitamente mais rico que ao invés minimizar os dispositivos de enunciação, tende a maximiza-los propositadamente, aumentando a consciencialização da produção cinematográfica junto da audiência e criando o distanciamento necessário para uma observação atenta baseada no pensamento crítico e na razão.

O estilo de cinema disruptivo é conseguido recorrendo a várias técnicas, nomeadamente os famosos jump-cuts godardianos que catapultam a ação, assim como através da exibição do próprio aparato do filme – mostrando a presença da câmara ou dos microfones-, o reconhecimento da audiência, entre outras. O filme ganha, através da utilização destes artifícios auto reflexivos, o estatuto de metafilme ao mostrar implícita ou explicitamente os seus próprios enunciados fílmicos4Aumont, J. & Marie, M. (2008), Dicionário Teórico e Crítico do Cinema. Lisboa: Edições Texto & Grafia. original francês de 2001.. Uma das características mais evidentes dos filmes de Godard é o olhar direto para a câmara por parte dos seus personagens, sendo mesmo o reconhecimento da audiência um dos seus tropos textuais mais reconhecidos. Estes olhares ditam uma dupla resistência: por um lado, resistência às estruturas conservadoras da representação cinematográfica5Brown, T. (2012), Breaking the Fourth Wall: Direct Address in the Cinema. Edinburgh: Edinburgh University Press.; por outro, resistência ao papel passivo e voyeurista do espetador face ao que vê no ecrã.

O próprio aparato cinematográfico estimula um olhar assimétrico: a sala escura reúne todas as condições para que o espetador veja sem ser visto, o que o convidando a assumir uma posição de omnisciência e autoridade face ao que é projetado6Mulvey, L. (1975), «Visual Pleasure and Narrative Cinema», Screen, 16(3), pp. 14- 26.. Ao permitir que os seus personagens olhem para a câmara apelando diretamente à audiência escondida, a assimetria própria do aparato fílmico é convertida em simetria, quebrando a ilusão voyeurística do espetador. Ao interpelar diretamente o observador escondido, as personagens dos filmes passam de puro objeto de espetáculo, delimitadas ao espaço que lhes é habitualmente dado na narrativa, a “o Outro”, um sujeito com a possibilidade de simular um olhar emancipador, comunicar e saltar para o mundo do espetador. Esta interação simulada levará subsequentemente à criação de um novo espaço multi-diegético, uma zona de mediação entre dois parceiros de comunicação.

O espetador terá assim de aprender a lidar com as novas fronteiras do filme, assumindo uma perspetiva de contacto ao invés de separação7Perkins, V. F. (2005), «Where is the World? The Horizon of Events in Movie Fiction». In Gibbs, J. & Pye, D. Style and Meaning: Studies in the Detailed Analysis of Film, Manchester: Manchester … Ler mais. Esta rutura do tecido da ficção permite ainda, paradoxalmente, que o espetador seja incluído no jogo da representação: os momentos do olhar para a câmara funcionam como “fronteiras elásticas entre um interior que tenta furar os seus limites e um exterior que pretende penetrar no discurso do filme”8Casetti, F. (1998), Inside the Gaze: The Fiction Film and It’s Spectator. Bloomington: Indiana University Press.. A fundação deste espaço multi-diegético permite, assim, mesclar realidade e ficção, expandindo e fundindo os limites de ambas as categorias. Como dizia Jean-Luc Godard: “Olhar em redor é viver livre. Por isso o cinema, que reproduz a vida, deve filmar personagens que olham à sua volta.”9Godard, JL. (1972), Godard on Godard. New York: Da Capo

Sara Teles Varela

Doutoranda em Estudos Artísticos na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Imagem do Filme “Bande à part” do realizador Jean-Luc Godard (1)

Notas de rodapé

Notas de rodapé
1, 9 Godard, JL. (1972), Godard on Godard. New York: Da Capo
2, 8 Casetti, F. (1998), Inside the Gaze: The Fiction Film and It’s Spectator. Bloomington: Indiana University Press.
3 Sterritt, D. (1999), The Films of Jean-Luc Godard: Seeing the Invisible. Cambridge: Cambridge University Press.
4 Aumont, J. & Marie, M. (2008), Dicionário Teórico e Crítico do Cinema. Lisboa: Edições Texto & Grafia. original francês de 2001.
5 Brown, T. (2012), Breaking the Fourth Wall: Direct Address in the Cinema. Edinburgh: Edinburgh University Press.
6 Mulvey, L. (1975), «Visual Pleasure and Narrative Cinema», Screen, 16(3), pp. 14- 26.
7 Perkins, V. F. (2005), «Where is the World? The Horizon of Events in Movie Fiction». In Gibbs, J. & Pye, D. Style and Meaning: Studies in the Detailed Analysis of Film, Manchester: Manchester University Press, pp. 16-41.

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