Abriu a porta de sua casa. Os seus olhos tinham deixado de perceber o estado caótico em que estavam todas as divisões daquele modesto apartamento. Tirou os sapatos de forma atabalhoada e deitou-se em cima da roupa que se ia acumulando num pequeno sofá castanho no centro da sala.
Ligou a televisão e colocou na boca o resto de um pão com manteiga que havia sobrado do pequeno-almoço. A concentração dele perante as imagens que passavam no pequeno ecrã era nula. Retirou do bolso do casaco o telemóvel. Odiava aquele telemóvel, era demasiado moderno. Sempre preferiu os de teclas. Adorava aquele telemóvel, havia sido uma prenda da sua filha. Cheio de esperança desbloqueou o visor para descortinar se teria alguma chamada dela. Nada. A última vez que a sua filha lhe tinha ligado tinha sido no dia de natal. Ali estava “25/12/2023 – 91xxxxxxx” – Portugal – 15:13h”. Foi Natal. E, agora, mais de um mês depois, nem uma simples mensagem de olá. A televisão capturou a sua atenção. Era uma publicidade da SOSolidão. Não tinha nada a perder, ele que, afinal, já tinha perdido tudo. Ajeitou-se no sofá, suspirou e ligou. Do outro lado, uma voz dócil feminina atendeu.
— Linha SOSolidão. Em que posso ajudar?
— Eu vi este número na televisão… — sentiu- se arrependido e apeteceu-lhe desligar.
— Muito bem. Em que posso ajudar, senhor… pode dizer -me o seu nome?
— Júlio. — Ele, sem saber explicar, notou um sorriso empático do outro lado da linha e ganhou coragem de continuar. — E o seu?
— Eu sou a Ana. Estou sempre aqui para conversar um bocadinho. Pode falar sobre o que quiser.
Ele acedeu. E, começaram por falar das coisas mais banais. Até que o homem sentiu confiança para dizer aquilo que, verdadeiramente, o levou a ligar.
— Sinto que não consigo mais, Ana. — Desabafou o homem. — Nada me prende aqui.
— O que o faz sentir-se assim?
— Sou viúvo, Ana. E, para piorar, a minha filha não fala comigo.
— Lamento muito, senhor Júlio. O que acha que levou a isso?
Júlio retirou uma fotografia da filha que levava , na sua carteira, para todo o lado. O cabelo loiro era da sua mãe porém os olhos verdes eram mesmo dele. “Ela é tão linda”.
— Gostava de lhe saber responder, Ana. — Começou Júlio. — E, por favor trata -me só por Júlio que o Senhor está no Céu… a última vez que ela me ligou foi no Natal.
— E você? Não lhe tentou ligar?
— Eu sei que ela não vai atender.
— Como assim, Júlio? Não pode pensar dessa forma. Tem de tentar. Ela pode estar à espera do seu telefonema. De uma palavra sua.
— Eu sei que ela não vai atender. — Insistiu ele. — É tarde demais.
— Mas…
— A Ana não percebe. — Suspirou o homem com um tom de voz amargurado. — Provavelmente, tem uma vida quase perfeita.
— Pelo contrário, Júlio…— a mulher mantinha um timbre suave e dócil. — O meu casamento de treze anos chegou ao fim em janeiro. As coisas já não estavam bem e um Natal passado com a família dele apressou o final. — Explicou ela. — Mas hoje estamos aqui por si, Júlio. Não pode desistir. Nem de si. Nem dela. Muitas vezes, por orgulho, há coisas que ficam por dizer. E, o tempo corre. O tempo é tramado.
Ele explodiu em lágrimas. Deixou cair o telefone e levou as mãos à cara. Ana chamava. Após alguns segundos o homem voltou a pegar no telemóvel.
— Já… não… dá… Ana…— soluçou Júlio. — Ela… não… pode… atender…
— Não estou a perceber, Júlio.
O homem não conseguia conversar. Todas as emoções haviam invadido o seu espírito. As lágrimas não paravam. Deixou o pranto tomar conta de si. A dor estava presa. Precisava de ser solta.
— Eu vou ter que desligar se não falar comigo, Júlio. — Avisou Ana. — Explique -me o que se passa. Em que posso ajudar.
— Ela partiu. — Respondeu Júlio. — Por isso é que não me vai atender as chamadas. E nem me vai ligar, Ana. — Explicou. — Ela partiu e não é justo! Ela partiu e não aceito!
Ana percebeu finalmente.
— Lamento muito, Júlio. Eu estou aqui. Podemos falar. Podemos ficar apenas em silêncio. Agora eu compreendo…
— Obrigado, Ana. — Júlio agradeceu. — Quero sentir que está alguém perto de mim. Como se fosse um abraço.
— Não sairei daqui.
E ficaram ali. Em silêncio. Ele imaginando o abraço de alguém que nem conhecia e, no entanto, tinha sido a pessoa que o mais tinha ajudado. Apenas com algumas palavras.
Imagem Por, Alphonse Osbert, “The Solitude of Christ”
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