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Quarenta a cinco anos após a sua aprovação e através de múltiplas vicissitudes internas e externas, políticas, culturais, económicas e sociais, a Constituição de 2 de abril de 1976 tornou-se a Constituição portuguesa mais duradoura a seguir a Carta Constitucional, de 1842 a 1910.

Começada a elaborar em tempo de radicalismo revolucionário em Lisboa, acabaria por ser conformada em tempo de pacificação política tornada possível pelos acontecimentos de 25 de novembro de 1975. Continha, no texto inicial, formulações ideológicas próximas do marxismo (em sete ou oito artigos dos trezentos e doze) e mantinha ainda, a título transitório, o Conselho da Revolução.

Nada disso poderia prevalecer sobre:

  • A afirmação da dignidade da pessoa humana como base da República, o Estado de Direito democrático e o pluralismo de expressão e organização políticas (artigos 1.º e 2.º);
  • O primado dos direitos fundamentais em face da organização económica (Parte I do texto constitucional);
  • O extenso e rigoroso enunciado de direitos, liberdades e garantias e de direitos económicos, sociais e culturais (artigos 24.° e segs. e 58.º e segs.);
  • A interpretação e a integração de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 16.º, n.º 2);
  • O jus-universalismo, traduzido no princípio da equiparação de direitos dos não portugueses (artigo na proibição de extradição quando o Direito do Estado requisitante preveja pena de morte ou outra de que resulte lesão irreparável da integridade física (artigo 33.º, n. 6.º), o respeito dos direitos do homem nas relações internacionais (artigo 7.º, n. 1.º);
  • A prescrição da aplicação imediata dos direitos, liberdades e garantias e de direitos de natureza análoga (artigo 18.º, n.ºs 1 e 2);
  • O princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, entre outros);
  • A garantia de setores cooperativo e privado na economia (artigos 84.º e 85.º)
  • A consagração de princípios gerais de Direito eleitoral (artigo 113.º);
  • A institucionalidade dos partidos políticos e do direito de oposição democrática (artigo 114.º);
  • A independência dos tribunais e a sua sujeição apenas a lei (artigo 204.º);
  • O desenvolvimento da fiscalização da constitucionalidade (artigos 277.º e segs.).

Este entendimento esteve, porém, longe de ser o único aduzido.

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Com efeito, se a Constituição trouxe a estabilização política segundo um modelo institucional idêntico ou análogo ao das democracias ocidentais, a sua entrada em vigor não significou o apaziguamento ou o consenso constitucional no país. Pelo contrário, desde o início, o debate à volta da Constituição assumiu um relevo inédito, por vezes excessivo e, em 1980, quase dramático. Nem isso surpreende a quem evoque o paralelo com outras épocas da nossa história contemporânea e, mais de perto com as vicissitudes e as sucessivas atitudes políticas que acompanharam a feitura da Constituição.

Esse debate centrou-se sobre aspetos globais da obra constitucional: sobre o sentido normativo fundamental da Constituição, e em especial da Constituição económica; sobre o seu caráter definitivo ou transitório; sobre os limites materiais de revisão constitucional; e sobre o modo de fazer a primeira revisão.

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Quanto ao sentido fundamental da Constituição, desenharam-se quatro posições.

Para uns, o que haveria a realçar na Constituição seria o socialismo (ou a transição para o socialismo), o rumo para uma sociedade sem classes, o poder democrático das classes trabalhadoras, o controlo de gestão, a apropriação coletiva, a eliminação dos monopólios e dos latifúndios, as nacionalizações, o plano, a reforma agrária, as organizações populares de base.

Para outros, seria também o socialismo e, mais do que o socialismo, o caráter marxistas e a ditadura do proletariado; mas, exatamente por isso, pronunciavam-se contra o texto de 1976.

Uma terceira leitura da Constituição, reconhecendo nela tanto um elemento democrático quanto um elemento socialista, afirmava-os incompatíveis (senão por princípio, pelo menos pelo modo como se disporiam ou sobreporiam, sem coordenação, no articulado constitucional). A Constituição seria internamente contraditória e, na prática, ou não poderia funcionar ou poderia conduzir a qualquer tipo de solução política e económica.

Uma quarta maneira de ver era a dos que encontravam na Constituição igualmente esses elementos — a democracia ou a democracia política, pluralista e representativa, e o socialismo ou a democracia económica, social e cultural — como frutos de um determinado compromisso político e os procuravam interpretar e integrar sistematicamente através dos processos próprios do trabalho jurídico. Mas ainda aqui podiam distinguir-se cambiantes.

Foi sempre esta última posição a que sempre defendi, apoiando-me no ponto firme que era e é a legitimidade democrática da Constituição. E foi ela que constantemente veio a ser adotada pela Comissão Constitucional.

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A Constituição não fala em “período de transição”. No entanto, por a Plataforma de Acordo Constitucional entre o Conselho da Revolução e os partidos políticos de 26 de fevereiro de 1976 ter sido fonte imediata da parte III e da parte IV e por a Constituição prever um regime da primeira revisão diferente do das revisões ulteriores (menos difícil), estar-se-ia diante de uma Constituição transitória, diante de uma Constituição destinada a vigorar por um período curto até essa primeira revisão ou novação constitucional.

Doutro prisma, a Constituição seria transitória, por incindível da transição para o socialismo a que ela própria se referia; seria uma Constituição para a transição para o socialismo e, logo que este objetivo estivesse alcançado, haveria de ser substituída por outra, determinada pelas relações sociais de produção que então viessem a prevalecer.

Estas opiniões não eram suficientemente fundadas.

Por um lado, o ter sido a Plataforma uma das fontes da Constituição e o falar em “período de transição” só poderia implicar (como veio a implicar) uma consequência: a extinção do Conselho da Revolução na primeira revisão constitucional (correspondente ou subsequente ao período dito de transição). E essa consequência apenas prova (e provou) que a Constituição continha em si um princípio definitivo, o princípio democrático, em relação ao qual o Conselho da Revolução representava um desvio.

Por outro lado, regras específicas da primeira revisão eram a exigência de maioria de dois terços dos Deputados presentes, desde que superior a maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções (artigo 286.º, n.º 1), em vez de maioria de dois terços dos Deputados em efetividade de funções (artigo 287.º, n.º 3); e a aproximada coincidência da atribuição a Assembleia da República de poderes de revisão com os termos da primeira legislatura e do primeiro mandato presidencial (artigos 286.º, n.º 1, 299.º, n.º 1, e 296.º). Mas estas regras justificavam-se por a primeira fase de vigência de qualquer Lei Fundamental equivaler a um tempo de experimentação e por a extinção do Conselho da Revolução exigir a reponderação do sistema de governo. Não permitiam concluir que se fosse passar de uma Constituição a outra.

Quanto a “transição para o socialismo” tão pouco ela conferia a Constituição índole transitória, apenas lhe conferia (parcialmente) caráter programático. A transição não era exterior à Constituição formal e alterações de preceitos que viessem a ocorrer, por virtude disso, não afetariam a Constituição material.

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Tanto a Constituição não era transitória que enumerava explícitos limites materiais da revisão constitucional — quer dizer, princípios substantivos que deviam ser respeitados em ulterior modificação do seu texto. E a volta do preceito a eles referente (o artigo 290.º) uma larga polémica doutrinal (e política) se estabeleceu.

O lugar indicado para analisar o problema, extremamente complexo, não pode ser, porém, este. Por agora apenas se diga que cláusulas de limites materiais encontram-se em várias Constituições (como na nossa de 1911, no seu artigo 82.º, § 2.4, a respeito da forma republicana de governo); o que distingue a Constituição de 1976 é prever um copioso elenco, abrangendo também princípios da organização económica.

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Portugal pode ratificar, dois anos depois da aprovação da Constituição, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e os seus Protocolos Adicionais.

Mais tarde, aderiu ou ratificou numerosos tratados internacionais de proteção da pessoa humana; ingressaria nas Comunidades Europeias, antecessoras da União Europeia; ratificaria o Tratado Institutivo do Tribunal Penal Internacional.

A Constituição portuguesa influenciaria, em alguns pontos, as Constituições espanhola de 1978 e brasileira de 1988 e pode considerar-se largamente fonte das Constituições de Cabo Verde, da Guiné-Bissau, de São Tomé e Príncipe, de Angola e de Moçambique, ocorrida nesses países a democratização dos anos noventa, tal como seria fonte principal da Constituição de Timor independente.

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O modo como se deveria fazer a primeira revisão constitucional foi, de todas as questões, a mais agitada. A despeito de a Constituição se ocupar ex professo do assunto, cometendo tal poder a Assembleia da República [artigos 164.º, alínea a), 169.º, n.º 1, e 286.º e segs.], houve quem invocasse a possibilidade ou a necessidade de recorrer ao povo através de referendo; foram apresentados um projeto de lei e uma proposta de lei de autorização legislativa tendentes a organização do referendo; e a campanha eleitoral relativa a eleição presidencial em 1980 teve-o como tema primacial.

O referendo serviria para resolver o problema dos limites materiais da revisão constitucional, pois só o povo, titular da soberania, o poderia ultrapassar; ou para vencer o bloqueamento ideológico° que Constituição traria consigo; ou para eliminar a regra da maioria qualificada de dois terços para a aprovação de alterações a ou ainda, na hipótese de não se formar na Assembleia da República a maioria qualificada exigida no artigo 286.º, para viabilizar a própria revisão.

Sendo, embora, diversas as funções esperadas do referendo, era comum a fundamentação: o princípio democrático – por o povo, por direito natural (segundo alguns), estar acima da Constituição e esta mesma apelar para a participação direta e ativa dos cidadãos na vida pública (artigos 48.º e 112.º).

Mas a fraqueza jurídica dos argumentos era notória, à face dos cânones gerais de interpretação e das regras básicas do constitucionalismo ocidental (em que todo o poder público tem de estar previsto e contido em regras jurídicas e em que prevalecem os mecanismo representativos e pluralistas).

No fundo o que estava em causa era ainda a oposição a Constituição; era, não já um processo para a modificar – o que pressupunha a aceitação das suas regras – mas um processo para a substituir; era saber se deveria ou não dar-se, e de que forma, rutura da ordem constitucional de 1976.

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Os resultados da eleição presidencial de dezembro de 1980 resolveram este problema no sentido da inadmissibilidade do referendo (com risco de degenerar em plebiscito, na pior aceção do termo) e do respeito das regras constitucionais sobre revisão.

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A primeira revisão constitucional, em 1981 e 1982, efetuar-se-ia, pois, no respeito pela Constituição, em ambiente de participação. E extinto o Conselho da Revolução, os militares, pela primeira vez desde 1822, deixaram de intervir na vida política.

As revisões constitucionais subsequentes continuariam nessa linha.

Assim como um papel importante seria desempenhado pela jurisprudência, primeiro da Comissão Constitucional, de 1976 a 1980 e, depois, pelo Tribunal Constitucional, semelhante aos de vários países europeus, e posto a funcionar em 1982.

[Este foi um capitulo retirado do livro, “Aperfeiçoar a Constituição”]

Por: Jorge Miranda (Distinto constitucionalista português que teve um papel importante na elaboração das Constituições de Portugal (1976), São Tomé e Príncipe (1990), Moçambique (1990), Guiné-Bissau (1991) e Timor-Leste (2001). É também Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Universidade Católica Portuguesa)


Obra, “O Chafariz d’El-Rei, no bairro de Alfama, em Lisboa

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