Mulher sozinha em palco, deitada no chão, aos poucos acorda, espreguiça-se, sempre com um ar fechado e triste.
Senta-se de frente para o público, para por momentos para olhar o horizonte, passa as mãos pela cara e pelo cabelo, abraça-se e num movimento contínuo balouça o corpo.
Ouve-se o som da sirene de ataque aéreo, a mulher levanta-se e anda em círculos, tapando os ouvidos, o som vai-se dissipando e a mulher volta a sentar-se no chão de frente para o público.
Nevena – Este som ensurdecedor corrói-me a alma, está sempre aqui dentro dos meus ouvidos. É o uivo das sirenes, tal qual um grito de horror… é o estouro das bombas, agora, depois e depois volta tudo de novo, uma e outra vez. Horas nisto, horas!
O que sinto na realidade, não sei ao certo, é uma inquietação, é uma angústia profunda, não conseguir entender porque é que os homens são tão impiedosos, tão vis, tão cruéis.
(Adotando uma postura e voz de criança.) A primeira vez que ouvi falar na palavra guerra era muito pequena, não consegui perceber o significado desta palavra. Apenas ouvia os grandes a falar sobre ela, sobre as tropas, as mulheres escondidas choravam e eu não entendia porquê?
Acabei por entendê-lo pouco tempo depois, quando uma noite, tudo estava em silêncio e eu ouvi a guerra a começar. Fomos todos apanhados de surpresa, quando a sirene tocou ensurdecedora. Alguns foram a tempo de se esconder, mas nós ficámos… conseguimos resguardarmo-nos na nossa dispensa e a rezar para que tudo acabasse. Quando tudo acalmou, saímos da dispensa e vimos a nossa casa destruída, as paredes rachadas, os vidros das janelas simplesmente tinham desaparecido e ainda assim, insistimos em manter-nos em casa. Na noite seguinte e já depois de mais dois ataques, tivemos que fugir para o abrigo que existia no fim da nossa rua. Quando lá chegamos fiquei surpreendida quando vi tanta gente naquele lugar, reconheci algumas caras, muitas mulheres com crianças pequenas e muitos idosos. Todos tinham algo em comum, um olhar vago, triste, sem esperança. No pouco tempo que podíamos sair do abrigo, procurávamos avidamente o sol, mas os dias já não eram iluminados. Mesmo que não houvesse nuvens no céu para nós todos os dias eram sombrios, de chuva, frios… Uns dias depois o meu pai andava muito atarefado de um lado para o outro, a arrumar algumas das suas coisas, até que se foi embora… eu ainda corri atrás dele e chamei-o:
Nevena – Papá, papá! Não te vás embora, não me deixes aqui, leva-me contigo.
Pai – Nevena, meu amor, não posso, não posso levar-te comigo. Vou para um sitio muito feio. Vou, mas prometo voltar.
Só que esse dia não aconteceu, o meu pai não chegou a voltar… A minha família ficou dilacerada, a minha mãe com o desgosto deixou-se morrer, a minha irmã foi levada para um destino longe de mim e eu fiquei.
Um dia levaram-me para um lugar onde estavam muitas outras crianças como eu. Apesar de sermos muitos, aquela casa era tão terrível e medonha que temíamos a nossa própria sombra. Os dias passavam e eu sentia-me cada vez mais abstraída do que passava à minha volta. Uma vez alguém me perguntou:
Desconhecido – A guerra já acabou?
Nevena – Não sei… (pensando interiormente) para mim era como se ela tivesse acabado de começar, continuava a sentir na pele todo o medo, toda a agonia dos primeiros dias. À noite quando colocava a cabeça na almofada e fechava os olhos, aqueles uivos emergiam e destruíam-me aos poucos. Dos meus olhos precipitavam-se grossas lágrimas que mais pareciam fel. E as noites eram passadas em branco.
(Levanta-se, dá alguns passos, abandonando a personagem de criança e tomando a atitude de jovem, senta-se num outro ponto do palco, como se estivesse a olhar para o horizonte.) Até que num dia de sol, tudo mudou. Estava sentada olhando o horizonte lutando contra estes meus fantasmas quando senti que alguém se juntou a mim… e ali ficámos os dois sem nada dizer, apenas limitamo-nos a contemplar o que nos rodeava. Era já primavera, via-se aqui e ali os resquícios de um gélido inverno, mas o sol fazia despontar pequenas maravilhas na natureza.
Várias vezes voltávamos aquele lugar e, o nosso mundo era ali, debaixo daquela bétula que nos acolhia como se fosse a nossa casa. Uma certa manhã apercebemo-nos que algo maravilhoso estava a acontecer diante nos nossos olhos. Uma pequena nevena estava a nascer por entre duas pedras, ainda geladas e com restos de neve. Este era o pretexto para nos afastarmos e lá irmos nós, cuidar da nossa nevena. Dia após dia, ela crescia, até que timidamente floriu e os momentos cinzentos tornaram-se na mais bela poesia. Sorriamos, até que ao cruzarmos os nossos olhares, o coração disparou não pelos medos, mas agora pelo calor que o amor, desconhecido até então, despertava em nós. Aquela nevena solitária uniu-nos, já não falávamos da guerra, dos fantasmas, das angústias… agora só pensávamos nos dias que estavam para vir.
(Assumindo uma postura de pessoa mais velha, curvada pela idade) E assim foram muitos e muitos anos, até que um dia, suavemente com um sorriso nos lábios o meu Lypa partiu. E eu mais uma vez fiquei… mas agora já não vivo com os fantasmas da guerra, sobrevivo rodeada dos anjos do amor.
Por: Sandra Monteiro (Autora, Atriz Amadora no Teatro Contra Senso e Criadora do Bluestrass)
Imagem Por, John William Godward, “Reverie (In the Days of Sappho)”
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