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A poesia é um género literário muito eficaz na transmissão de emoções e na valorização da estética. Os textos poéticos são apresentados em verso e estruturados de forma harmoniosa, de acordo com o objetivo do autor. É considerado o género mais inspirador e, de certa forma, abstrato.

Li Al Berto pela primeira vez há um ano, e nunca mais esqueci este poema, contido no livro “Horto de Incêndio”. O poeta escreve principalmente sobre questões existenciais, sobre a angústia e a solidão e os paradoxos da vida humana. Al Berto, em entrevista, um mês antes da sua morte, sobre o livro em questão: “Aterrador foi ter-me apercebido o que havia neste livro de premonitório. A eternidade não é lerem-me dentro de 50 ou 60 anos ou ficar na história da literatura portuguesa. Só espero que meia dúzia de doidos me leiam agora e isso os toque.” E é exatamente assim que se sente quem o lê.

deus tem que ser substituído rapidamente por poemas,
sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis,
vivos e limpos.

a dor de todas as ruas vazias.

sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste
silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abismo.
sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de acabar comigo mesmo.

a dor de todas as ruas vazias.
” – Notas para o Diário, Al Berto

Sophia de Mello Breyner Andresen é uma referência, considerando-se quase um clássico-contemporâneo. Para mim, Sophia tem uma escrita sensível e tranquilizante que demonstra que era uma mulher livre e independente. Muitos dos seus poemas têm como tema o ‘mar’, ou a ‘praia’. Este que trago como favorito não é exceção. Fala sobre a liberdade, sobre como é a sensação de nos sentirmos livres – e esta senhora explica-o tão maravilhosamente.

Aqui nesta praia onde Não há nenhum vestígio de impureza,

Aqui onde há somente

Ondas tombando ininterruptamente,

Puro espaço e lúcida unidade,

Aqui o tempo apaixonadamente

Encontra a própria liberdade.
” – Liberdade, Sophia de Mello Breyner Andresen

Mas, e se pudéssemos ter estas sensações com prosa? A escrita poética pode despertar e estimular novas formas de ver o mundo, seja ela em poesia ou prosa.

No caso da prosa, podemos esperar um texto mais estruturado, mas, ainda assim, sem seguir as regras mais expectáveis. A qualidade da escrita desperta uma melhor e menos superficial perceção das palavras por parte dos leitores.

Afonso Cruz é, para mim, um exemplo perfeito de uma prosa apaixonante. Com uma escrita simples, consegue deixar-nos a sonhar com cada conexão de palavras. Quando terminamos um livro de Afonso Cruz sentimo-nos leves e, normalmente, com um sorriso na cara, independentemente do final da história. É uma leitura tão leve e honesta, perfeitamente adequada para qualquer momento ou situação.

“E disse ainda que, na escola, quando lhe perguntavam onde tinha nascido, respondia apontando para o horizonte.” – Afonso Cruz, Flores

“Quando acordaram de manhã, na mesma cama, ela disse-lhe que queria ter um passado com ele. Não era um futuro, que é uma coisa incerta, mas um passado, que é isso que têm dois velhos depois de passarem uma vida juntos. Quando disse que queria ter um passado com alguém, queria dizer tudo. Não desejava uma incerteza, mas a História, a verdade.” – Afonso Cruz, Jesus Cristo Bebia Cerveja

A prosa poética funciona também como um estímulo à criatividade, desenvolvendo-a sempre de forma subjetiva e livre. O mesmo acontece com um texto em prosa, mas este aditivo mais poético transforma qualquer história em histórias infinitas – uma por cada leitor.

A interpretação do texto é também feita com mais qualidade, por não ser uma escrita superficial. Assim, para atingir uma imagem mais sofisticada, a prosa poética quebra algumas regras comuns tais como a formatação do texto ou até o estilo de pontuação. Este género explora o ritmo harmonioso das frases e parágrafos, transformando-os em algo com identidade própria.

A escrita da prosa poética não tem o objetivo de distrair ou descontrair o leitor. Pelo contrário, exige toda a sua atenção para assim ser possível absorver toda a arte presente naquelas palavras.

Por fim, gostaria de deixar uma referência à autora que mais me surpreendeu e apaixonou até hoje com a sua escrita poética, em prosa. Ali Smith com a sua aversão à formatação e pontuação tradicionais consegue transmitir a sensibilidade e beleza da poesia, em prosa. É um desafio ler qualquer livro da autora, pois o leitor tem de estar completamente investido nas suas palavras, para assim perceber o que é história, o que são pensamentos ou o que são diálogos. Quando se termina um livro de Ali Smith sentimos que nos conhecemos muito melhor, sentimos que passamos por uma experiência literária que marca a vida e a memória. Sentimos que nada é perfeito, mas enquanto houver livros assim conseguimos sobreviver.

“… Como pode acontecer quando se trabalha para retratar alguém em pintura, a partir do momento em que as pintei na superfície do fresco deixaram de ser as pessoas que eu conhecia: isto aconteceu sobretudo na cor azul destinada a ilustrar o céu, o lugar entre os deuses e a terra. A maior parte das vezes uma imagem é apenas uma imagem: mas por vezes uma imagem é mais: olhei para os rostos à luz da tocha e constatei que eram evadidos: tinham-se libertado de mim e da parede que os fizera e aprisionara e até mesmo de si próprios.” – Como Ser Uma e Outra, Ali Smith

“Francescho, és verde como uma folha acabada de brotar, disse Barto. Há incontornáveis verdes, até nas mais temporãs das folhas, disse eu. Quantos verdes há?, disse Barto 7 tons fundamentais ao todo, disse eu. E talvez 20 a 30, talvez mais, variações de cada um deles. E tu és todos esses verdes misturados, disse ele, porque qualquer outra pessoa que não tu já teria percebido e jamais precisaria que lho dissessem que tenho outros planos para nós que não passam por pernoitar em Reggio. Olha para ti, ainda estás a calcular, não estás, o modo de fazer quantos verdes são afinal?” – Como Ser Uma e Outra, Ali Smith

Por: Mariana Salvador (Criadora de Conteúdo e Mestrada em Marketing)


Obra por, Giorgio Vasari, “Six Tuscan Poets

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