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Há mais de vinte anos atrás, no verão de 1999, um grande Escritor Sul-Africano – por razões várias, então pouco conhecido na Europa e muito pouco conhecido em Portugal –, John Maxwell Coetzee, escreveu um romance que viria a abalar vários meios e fóruns de discussão, dentro e fora dos circuitos académicos convencionais e, a título remoto e ulterior, valer-lhe o Prémio Nobel da Literatura do ano 2003. O romance chamava-se Disgrace e lidava, de forma inusitada, com um drama nacional muito pouco conveniente para um público liberal e humanista, que ainda venerava (e veneraria) a figura de Nelson Mandela como um mito do século XX: uma espécie de linchamento étnico do antigo grupo (ou cor) social privilegiado às mãos da maioria negra na África do Sul.

Disgrace é um livro sobre a África do Sul do imediato pós-Apartheid, certamente, e há nele muitas referências, até de teor geográfico, cuja pertinência ultrapassa o leitor leigo – o mesmo é dizer, insuficientemente viajado. Algumas subtilezas de uma prosa nua, alusiva e, muito pertinentemente, apelidada por alguns críticos literários de renome como ‘sinóptica’, são pouco acessíveis, não só a quem não conheça a África do Sul (um país com uma superfície de quase 1 300 000 km², 11 línguas oficiais e um dos índices de criminalidade mais elevados do mundo), mas mesmo a quem não conheça a Cidade do Cabo e a zona do Cabo Oriental. (A este propósito, alguns comentadores alegariam, de forma pertinente, que tal dimensão de exclusividade, a ter cabimento, excluiria da mera compreensão textual um público que se autoproclama especialista na obra de John Coetzee…).

Mas Disgrace é bem mais do que um livro sobre a Nova África do Sul, um país recentemente emancipado de um jugo racista mundialmente proclamado e condenado, o Apartheid – muito embora se excluam desse repúdio, como é bem sabido, algumas figuras políticas cimeiras das últimas décadas do século XX, incluindo um ex-Chefe de Estado Português.

E isto porque há, ao longo de toda a história narrada, bem alojados nos seus mais recônditos momentos descritivos, indícios estremecedores de uma mudança de paradigma de comunicação – política, interpessoal, intercultural, mesmo auto-referente – que levariam alguns anos a consolidar-se a uma escala global e infiltrar a democracia e a vida comum, como a vida íntima, dos seus cidadãos.

Em alguns momentos-chave da história, e sempre com o famigerado tom de ‘sussurro’ ou de crítica céptica aos novos ‘costumes’, proferido através da voz indirecta do narrador, Coetzee atribui a David Lurie (o protagonista da história) incompreensões sobre os novos veículos de comunicação da geração com a qual já não é capaz de comunicar (é a geração dos seus alunos, da sua filha e dos amigos da sua filha e é também a minha geração).

Uma dessas notas de incompreensão, que poderia servir como um aviso a um leitor meticuloso do romance diz o seguinte:

‘He buys a small television set to replace the one that was stolen. In the evenings, after supper, he and Lucy sit side by side on the sofa watching the news and then, if they can bear it, the entertainment.’ (Coetzee, 1999: 141)

Esta passagem textual é bastante inócua – como, de resto, o são todos os excertos desta história perturbadora e violenta, quando devidamente isolados.

Foi muitas vezes dito pela crítica, literária e jornalística, deste romance polémico que, muito mais do que fazer um diagnóstico político e social local, o que John Coetzee estava apenas a esboçar era um oráculo do alvor do novo milénio – em que a própria especificidade dos problemas sociais sul-africanos seria demasiado circunscrita para ter protagonismo e visibilidade num cenário político global calamitoso, ao mesmo tempo que os seus mais cruéis detalhes se normalizariam num mundo sem dimensões locais ou zonas de influência geoestratégica conhecidas.

E hoje, mais do que vinte anos volvidos sobre a publicação de Disgrace, aquilo a que assistimos é a massificação despudorada, agressiva e ininterrupta, numa comunicação social amorfa e omnívora, do fenómeno de indiscrição generalizada pressentido por Lurie e pelo narrador da sua história pessoal.

Muitos leitores considerarão arbitrário ligar a publicação de um romance escrito por um autor oriundo de um país periférico e muito problemático com a massificação dos social media e do negócio do showbiz televisivo, que transformaria veículos tradicionais de comunicação em receptores de espetáculos de desinformação e acosso da vida privada. Terão, em boa medida, razão – sobretudo pelo desconhecimento do impacto académico e não académico do último romance Sul-Africano de J.M. Coetzee no mundo cultural anglófono, bem como de alguns dos custos da sua publicação para o autor (Coetzee, após críticas de racismo proferidas pelo partido de Nelson Mandela e Thabu Mbeki, o ANC, sairia da África do Sul e prosseguiria a sua vida e a sua carreira na Austrália).

É que o problema em análise foi apenas sinalizado pelo autor de Disgrace, estando bem longe de se circunscrever a qualquer das suas hipostasiáveis mensagens, enquanto história. A forma como a comunicação social – como quase cada sector da esfera pública e privada nas sobrecarregadas democracias ocidentais – evoluiu ao longo dos últimos (cerca de) vinte anos, tornou a coscuvilhice mediática numa forma de vida simples, barata e rentável (visual como financeiramente).

Ora, não restam hoje dúvidas de que as emoções são importantes factores no processo decisional dos indivíduos e das organizações – incluindo as emoções mais vis e de difícil pilotagem em termos expressivos e comportamentais. Não há decisões ‘puras’, que resultem de uma estrita ponderação equânime entre alternativas igualmente razoáveis – e a crença no oposto, em termos públicos como privados, muitas vezes resulta apenas de omissões perigosas do impacto de factores emocionais no processo de escolha.

Mas o problema com emoções descoordenadas ou mal pilotadas, ou insuficientemente compreendidas – justamente aquilo que fez a tradição filosófica temê-las como ameaças, até as conseguir reinterpretar como inarraigáveis peças da engrenagem humana – é que podem dar aso a uma espécie de opacidade volitiva, deixando de ser móbeis de compreensão pessoal e interpessoal. A verdadeira ameaça da mediatização da vida comum e da vida íntima dos cidadãos, hoje tornada quase impercetível, por pura falta de alternativas percepcionáveis, é as pessoas deixarem de entender que estão a ser violentamente manipuladas e tornarem-se coautoras da sua própria eliminação moral.

No fundo, algum esforço de distanciamento crítico em relação à figura do Arauto – aqui por mim adscrita a elementos pouco discerníveis do trabalho de um escritor ainda menos conhecido entre nós – permitir-nos-á compreender a trajectória da sua voz num horizonte temporal relativamente lento, mas implacável. Senão, vejamos: no teatro, na política, dentro da vida pública de uma comunidade, de um país ou de um mundo que, de tanto sofrer um século marcado pelo jugo medonho da imposição de fronteiras e zonas fronteiriças inultrapassáveis, sonhou em eliminá-las e reconverter a terra numa espécie de grande planalto global, a figura do arauto é tão determinante como repudiada. E o seu destino, na qualidade de mensageiro de más-notícias, é dissolver-se no olvido – mas não sem que a sua mensagem se trivialize ou se dilua entre as nuances da vida prática de, quase literalmente, toda a gente. Quando a única maneira de receber notícias práticas com um teor normativo absoluto (como poder ou não poder sair de casa num determinado dia) exige que passemos pelo crivo da massificação da informação e respectivo alojamento num conjunto de canais sem crivo crítico, mas para cuja manutenção e bem-estar contribuímos sem sequer percebermos como, a última perda de liberdade de escolha ficou algures lá atrás (é impossível saber onde). Não é que sejamos ‘escravos’ da desinformação, como os jornalistas gostam de proclamar e tentar corrigir; é que não há libertação ou abolicionismo como ponto de referência futuro, se a medida da emancipação provém do mesmo recipiente opinativo, quer se autoproclame ‘científico’, ‘fact-checking’, social e ambientalmente ‘sustentável’ ou até politicamente conservador (o mesmo é dizer: estabilizante).

Uma curiosidade artística e biográfica sobre o escolhido Arauto desta crónica, J.M. Coetzee – curiosidade que faz, além disso, jus ao seu peculiar sentido de humor. Um pioneiro da produção de computadores IBM na década de 1960, e sempre avesso à mais mínima tentativa de intervenção mediática ou crítica no seu trabalho criativo, John Coetzee terminará os seus dias na pequena cidade de Adelaide, no sudeste australiano, ultimando uma complicada crónica sobre a vida e a morte de Jesus Cristo. Nenhuma forma ficcional serviria melhor semelhante destino.

Por: Ana Falcato (Doutorada em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa e Investigadora doutorada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa)


Obra por Caspar David Friedrich, Ruins in the Riesengebirge

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