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No entender de Roger Scruton (1944-2020), filósofo inglês com extensa obra sobre religião, estética e tradição, há duas formas de conhecer o mundo. Uma é a forma científica, sustentada por métodos científicos e centrada numa descrição natural dos factos. A outra é a prática de compreender e apreender o Lebenswelt, o mundo dos valores, centrado na procura de razões e significados em vez de ligações causais. Esta forma de conhecer o mundo é, em si mesma, emergente da ordem natural. Esta emergência não é simétrica: para Scruton, a natureza é ontologicamente anterior ao Lebenswelt. A sua versão de dualismo cognitivo sustenta-se num monismo ontológico: a realidade dos valores é emergente da realidade natural. A ciência não pode responder à questão do sentido da existência, uma vez que este “porquê?” das razões só pode ser abordado no espaço dos valores.

Scruton propõe então que abandonemos por completo qualquer tentativa de descrição científica do sagrado: devemos deixar de lado a ideia de que o sagrado é uma espécie de intervenção sobrenatural no mundo natural. O divino é de uma ordem diferente e não se pode abordá-lo de um ponto de vista científico. A ciência não pode dar resposta às questões teleológicas do mundo. Para obter uma resposta a estas questões, é preciso praticar a compreensão e olhar para o nosso Lebenswelt com um outro estado de espírito. A ciência do ser humano não será capaz de encontrar o sujeito que está na base da relação Eu-Tu. Este “Eu” é transcendental, está no limite do mundo natural – não existe algures, mas de outra forma, como a música, ou Deus. O sujeito desempenha o papel de charneira na prática da compreensão – um reflexo, na perspetiva de Scruton, da dinâmica entre liberdade e responsabilidade. Scruton escreve:

“Salientei que a ciência do ser humano, que vê no cérebro a sede de toda a atividade e pensamento, não encontrará, no organismo que explora, aquilo a que nos dirigimos no espaço das razões. O ‘eu’ é transcendental, o que não significa que exista noutro lugar, mas que existe de outra forma, como a música existe de outra forma a partir do som, e Deus de outra forma a partir do mundo.”1Scruton, Roger. The Soul of the World. Princeton: Princeton University Press, 2014. Pagina 185. Tradução feita pelo autor.

Estará Scruton a admitir aqui alguma forma de pluralismo ontológico? Não está apenas a defender critérios epistémicos diferentes para o Lebenswelt, mas também um tipo diferente de existência destes fenómenos? A relação entre estas duas formas de ver o mundo não é explicável, na perspetiva de Scruton. Isto é semelhante à ideia de Ludwig Wittgenstein de que não podemos explicar racionalmente (cientificamente), e justificar, o ponto de vista religioso. Para Scruton, não podemos explicar cientificamente a emergência do Lebenswelt a partir da ordem da natureza. Para Wittgenstein e para Scruton, ambos se resumem a uma diferença prática na forma de viver o mundo. Para Scruton, a própria relação de emergência entre a natureza e o Lebenswelt deve permanecer um mistério, reservado apenas a Deus. Na sua visão, a aceitação desta emergência como um mistério é o que constitui o núcleo da vida de fé que aceita plenamente a ordem da aliança2Scruton, Roger. The Soul of the World. Princeton: Princeton University Press, 2014.

O mundo que se abre através dos valores e da religião não é o mundo das leis naturais científicas. Por isso, reduzir os valores a um tipo de fenómeno físico não é explicá-los, mas simplesmente deixar as suas próprias questões sem resposta. Scruton é muito claro quanto ao facto de, para ele, a relação emergente do Lebenswelt com o mundo natural não se poder reduzir a qualquer forma de explicação empírica. A forma de ver o mundo que nos permite ouvir música nos sons, por exemplo, exige uma capacidade de conceptualizar e representar a experiência dessa forma. É emergente do mundo natural, mas é uma experiência que não pode ser encontrada em nenhum lugar no espaço e no tempo2. De forma semelhante, não é possível encontrar a presença de Deus no mundo através das lentes de uma investigação científica. Quando olhamos para o significado do mundo, procurando uma resposta à pergunta “porquê?”, não há absolutamente nada a ganhar em procurar respostas na ordem empírica.

Scruton defende que tem de haver algo que não é posto em causa quando lidamos com o Lebenswelt. Há um mundo comum de valores pressuposto e partilhado que sustenta a relação entre os sujeitos e lhes permite praticar a razão. A experiência da beleza é um exemplo paradigmático do encontro com as aparências que desempenham esse papel. As aparências são realidades, tão reais como os objectos naturais com que nos deparamos todos os dias. A experiência da beleza revela a verdade fundamental sobre o ser – nomeadamente, que o ser é um dom. Só se compreende esta verdade quando se abandona a procura científica de conexões causais e se contempla o ser numa perspetiva transcendental. Para compreender o sentido da arte, da literatura, da música, das humanidades, é necessário aplicar um método diferente do das ciências. Estes domínios dizem respeito à intencionalidade abrangente dos sujeitos, ao mundo emergente dos valores. Para compreender estas práticas no seu contexto, é necessário adotar um método próprio que não seja uma mera descrição dos factos, mas uma procura do seu significado interno. Uma procura de razões que se debruça sobre estes fenómenos, sobre as suas propriedades específicas, sem tentar reduzi-los à sua contrapartida física. Estes valores não são ilusões, mas realidades com as suas próprias regras. As metáforas que utilizamos não são formas menores de descrição, mas sim parte integrante dos próprios fenómenos. Estão incorporadas nos objectos do Lebenswelt, de modo que a metáfora não pode ser “traduzida” e constitui uma parte da própria experiência que temos com os domínios da moral, da estética e da religião. Os valores estão “lá fora”, fazem parte da estrutura interpessoal que constitui o Lebenswelt, partilhados entre os membros de uma comunidade:

“A música é toda aparência, mas não é uma ilusão (…). Está lá fora e não aqui dentro, para usar as metáforas familiares – mas note-se que são metáforas, o que pode ser tanto esclarecedor como enganador quando se trata de as explicitar.”3Scruton, Roger. The Soul of the World. Princeton: Princeton University Press, 2014. Pagina 144. Tradução feita pelo autor.

Estamos a lidar com uma metáfora enraizada – mas não uma metáfora de palavras, pois não estamos a falar da forma como as pessoas descrevem a música; estamos a falar da forma como a experienciam. É como se houvesse uma metáfora do espaço e do movimento incorporada na nossa experiência e cognição da música. Esta metáfora não pode ser ‘traduzida’, e o que ela diz não pode ser dito na linguagem da física4Scruton, Roger. The Soul of the World. Princeton: Princeton University Press, 2014. Pagina 144. Tradução feita pelo autor.

Há uma relação interna entre o que é a música e como a ouvimos. Não se pode separar a prática da audição e deixar a música intocada: as duas são constitutivas da mesma prática humana, do mesmo facto relacional do Lebenswelt. É uma caraterística da nossa cultura e da nossa forma de vida que transmite ideias, emoções, perspectivas, experiências que ultrapassam os limites da descrição. Scruton está aqui a apontar para uma ideia verdadeiramente wittgensteiniana: a de que algumas coisas só podem ser mostradas, e não ditas. A música é um dos meios para transmitir essas mensagens. É também interessante como Scruton argumenta que o ato de ouvir não é apenas um ato neutro dirigido à música, mas que “ouvir música” constitui uma prática não divisível em si mesma:

“A escuta não é uma prática que possa ser subtraída da nossa música, deixando a música inalterada. É tão necessário à natureza da música como a relação Eu-Tu é necessária à nossa natureza enquanto pessoas. A música, tal como as pessoas, é um facto relacional.”5Scruton, Roger. The Soul of the World. Princeton: Princeton University Press, 2014. Pagina 154. Tradução feita pelo autor.

O que é que se passa quando dizemos que uma música é “triste”, ou que está a andar “depressa”? Estamos a usar metáforas, ou estamos a dizer que a música é literalmente triste ou que está literalmente a andar depressa? Para Scruton, estamos na presença de metáforas enraizadas – uma perceção metafórica em si mesma. Estamos a “ouvir a música sob um conceito que não se aplica literalmente a ela” (minha tradução). E fazemo-lo dirigindo para a música a intencionalidade abrangente que dirigimos uns aos outros, situando assim a música no Lebenswelt no lugar onde situamos os nossos companheiros”6Scruton, Roger. The Soul of the World. Princeton: Princeton University Press, 2014. Pagina 161. Traduçao feita pelo autor.. Scruton diz que devemos olhar para o uso literal destes conceitos para ver quais são as semelhanças importantes em jogo. Temos de olhar para o uso literal para compreender a forma metafórica como estamos a conceptualizar a música que estamos a ouvir.

A objetividade do Lebenswelt revela-se na forma como a música abre um espaço fenomenológico próprio. Este espaço tem as suas próprias “regras virtuais”, nas palavras de Scruton, caracterizadas por uma subjetividade sem sujeito, governada por si própria. Encontramos o sentido da música no espaço musical criado por ela própria: “Os filósofos reducionistas que pensam que não existe algo como a essência devem, portanto, negar que a música exista. O seu mundo contém sons, mas não melodias, tal como contém cérebros, mas não pessoas”7Scruton, Roger. The Soul of the World. Princeton: Princeton University Press, 2014. Pagina 167. Tradução feita pelo autor..

Este espaço aberto pela música não pode ser redutível à sua contraparte física, pois isso implicaria a perda do próprio significado que faz da música mais do que som. No entanto, este espaço não é interno: está “lá fora”, e exige treino e domínio de conceitos. É preciso passar por uma espécie de educação emocional para poder voltar-se para fora da vida interior e ser capaz de a concetualizar. É através do contacto, da educação e da participação no Lebenswelt que nos conhecemos a nós próprios.

Ricardo Henriques

Autor do artigo “A Regra Por Detrás das Ideias“. Estudante de Doutoramento de Filosofia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Imagem Por, Michelangelo, “The Creation of Adam” (Cappella Sistina)

Notas de rodapé

Notas de rodapé
1 Scruton, Roger. The Soul of the World. Princeton: Princeton University Press, 2014. Pagina 185. Tradução feita pelo autor.
2 Scruton, Roger. The Soul of the World. Princeton: Princeton University Press, 2014
3 Scruton, Roger. The Soul of the World. Princeton: Princeton University Press, 2014. Pagina 144. Tradução feita pelo autor.
4 Scruton, Roger. The Soul of the World. Princeton: Princeton University Press, 2014. Pagina 144. Tradução feita pelo autor
5 Scruton, Roger. The Soul of the World. Princeton: Princeton University Press, 2014. Pagina 154. Tradução feita pelo autor.
6 Scruton, Roger. The Soul of the World. Princeton: Princeton University Press, 2014. Pagina 161. Traduçao feita pelo autor.
7 Scruton, Roger. The Soul of the World. Princeton: Princeton University Press, 2014. Pagina 167. Tradução feita pelo autor.

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