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As perguntas que fazemos e as nossas dúvidas apoiam-se em certas proposições que são excluídas da dúvida, como dobradiças sobre as quais aquelas se movem.

Ludwig Wittgenstein, Da Certeza 341

Naquela que é considerada a última fase do pensamento de Ludwig Wittgenstein (1889-1951), expressa na obra póstuma Da Certeza, encontramos a formulação de uma preocupação latente em todo a sua filosofia: de que forma os pressupostos não justificados das nossas crenças determinam o nosso pensamento? Estes pressupostos (referidos por Wittgenstein como “dobradiças”) desempenham um papel estrutural para o significado e para o conhecimento. Estas dobradiças são as proposições (ou regras, se não quisermos carregar essa bagagem filosófica) que não são referidas diretamente, mas que formam o background sobre o qual outras proposições são afirmadas e negadas. Se se quiser inquirir sobre a existência de Napoleão, por exemplo, não podemos duvidar da existência da Terra. Neste caso, a existência da Terra é uma dobradiça do jogo de linguagem sobre a existência de Napoleão. Porém, noutro contexto (numa investigação astrofísica, por exemplo) a existência da Terra pode ser questionada, e nesse caso outras dobradiças estarão em jogo. As dobradiças são móveis, dependentes do contexto (ontológico, epistémico e linguístico) em questão. Funcionam como a certeza sobre a qual assenta a dúvida, o tabuleiro sobre o qual é jogado o jogo da investigação. Estes pressupostos refletem, por isso, uma maneira de pensar, uma mundivisão, mostrando os valores que os constituem. São as regras que servem como guião para nortear e determinar a utilização dos conceitos. Um olhar atento sobre estas dobradiças informa-nos sobre os valores fundamentais de uma comunidade, tendo esta um âmbito cultural, local, ou humano. É nas dobradiças que encontramos o firmamento de códigos morais, pressupostos científicos, dogmas teológicos, regras semânticas. É também nas dobradiças que encontramos as raízes do desacordo, a ramificação paralela que impede uma compreensão posterior. Em suma, é aqui que encontramos a base de um ponto de vista.

Imediatamente várias questões se levantam, e a indústria filosófica desenvolvida sobre estas matérias fala por si. Posições realistas ou antirrealistas têm leituras diferentes da natureza das dobradiças, assim como certos epistemólogos discordam entre si sobre qual o carácter epistémico destas (tais como Duncan Pritchard, Daniélè Moyal-Sharrock, Sofia Miguens, Annalisa Coliva, Nuno Venturinha e Michael Williams). Enquanto alguns filósofos atribuem proposicionalidade às dobradiças, outros veem-nas de uma forma essencialmente prática, e não-proposicional. O seu estatuto não é de todo consensual entre os filósofos, todavia a sua importância não é questionada. Para Wittgenstein, as dobradiças de um jogo de linguagem refletem a mundivisão que sustenta o sentido desse jogo, desde a condição material da forma de vida humana aos elementos culturais e pessoais relevantes. Pela importância substantiva que apresentam, as dobradiças de Wittgenstein são tanto a chave para descodificar as confusões linguísticas que originam pseudoproblemas filosóficos (a Serpente junguiana a combater), como a ferramenta par excellence para desconstruir as raízes de profundos desacordos morais, epistémicos ou religiosos. É nas dobradiças que encontramos os axiomas que sustentam um sistema, direcionando para um ponto em vez de outro, e, assim, movimentando o espírito numa direção particular. A sua normatividade revela-se na firmeza com que sustentam o jogo da dúvida num determinado campo, orientando as questões e estruturando-as. É nas dobradiças que o método e a expectativa se encontram.

Talvez um dos usos mais relevantes das dobradiças para a epistemologia seja o do combate ao ceticismo radical. É também no contexto desta discussão que Wittgenstein desenvolve este conceito, procurando mostrar como uma dúvida universal que coloque tudo em causa tem necessariamente de se basear em algo que não é posto em dúvida. Este é o ataque principal de Wittgenstein ao método cartesiano de suspensão do conhecimento: para se poder duvidar de qualquer coisa, tem sempre que se assumir outra coisa como certa. Não podemos suspender todo o conhecimento e duvidar de tudo em simultâneo. Qualquer dúvida é sempre local, qualquer reforma num sistema de crenças é feita passo a passo. Em suma, a dúvida pressupõe a certeza. Por estas razões, o projeto cético radical universal está condenado a um paradoxo insuperável: a própria ideia de uma dúvida universal vai contra o funcionamento prático das regras epistémicas que seguimos. O cético não está simplesmente errado, mas profundamente enganado quanto ao funcionamento da epistéme humana. O seu projeto não é meramente falso, mas uma contradição com as nossas práticas. Wittgenstein não procura apresentar argumentos que refutem o cético, invés, o seu projeto é de dissolução do próprio sentido do ceticismo. É um ataque fundamental, que nega a possibilidade de se fazer sentido do desafio cético. A chave para esta dissolução do projeto cético reside na compreensão das dobradiças, da sua forma lógica ao seu papel substantivo concreto.

A importância filosófica desta ideia de Wittgenstein talvez ainda esteja por descobrir na sua totalidade. É de ressalvar o trabalho que tem sido feito pelos filósofos supracitados para melhor compreender o que Wittgenstein queria dizer com o conceito de dobradiças. Resta-nos continuar a trabalhar o seu pensamento, as ramificações possíveis e as implicações para as questões clássicas da epistemologia, ontologia e filosofia da religião.


Bibliografia

Coliva, Annalisa. “Which Hinge Epistemology?” Em Hinge Epistemology, de Annalisa Coliva e Danièle Moyal-Sharrock, 6-23. Leiden: Brill, 2016.

Miguens, Sofia. Uma Leitura da Filosofia Contemporânea – Figuras e Movimentos. Lisboa: Edições 70, 2019.

Moyal-Sharrock, Danièle. “The Animal in Epistemology: Wittgenstein Enactivist Solution to the Problem of Regress.” Em Hinge Epistemology, de Annalisa Coliva e Danièle Moyal-Sharrock, 24-47. Leiden: Brill, 2016.

Pritchard, Duncan. Epistemic Angst: Radical Skepticisim and the Groundlessness of Our Believing. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2015.

Venturinha, Nuno. Descriptions of Situations – An Essay in Contextualist Epistemology. Cham: Springer, 2018.

Williams, Michael. Unnatural Doubts: Epistemological Realism and the Basis of Scepticism. Oxford: Blackwell, 1991.

Wittgenstein, Ludwig. On Certainty. Editado por G. E. M. Anscombe e G. H. von Wright. Traduzido por Denis Paul e G. E. M. Anscombe. Malden: Blackwell Publishing Ltd, 2008 [1969].

Ricardo Henriques

Estudante de Doutoramento de Filosofia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Imagem Por, Rene Magrite, “The Treachery of Images, This Is Not a Pipe [La Trahison des Images, Ceci n’est pas une pipe]

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