O problema filosófico sobre a verdadeira função e razão de ser da faculdade humana de imaginar é antigo. No século XVIII, Kant fez da solução para o problema cognoscitivo colocado pelo livre jogo das faculdades mentais e o respectivo aporte criativo potenciado pela Imaginação Transcendental na descodificação de cenários significativos fora da esfera do mental, a solução da primeira pedra do seu edifício crítico (ver Crítica da Razão Pura, Analítica Transcendental).
Aquilo de que no fundo se trata, quando falamos de imaginação – e reduzindo a gíria filosófica moderna ao mínimo indispensável –, é de entender como podemos nós, a partir do aparelho perceptivo que efectivamente temos, fazer sínteses perceptivas ajustadas a uma realidade exterior comum, minimamente negociável com os nossos parceiros epistémicos e interlocutores habituais. Trata-se da capacidade humana de construir quadros fenoménicos comuns, partilhados – entender que o que temos diante de nós é uma casa, por exemplo, ou um cenário televisivo com uma determinada configuração espacial, reproduzido através de um dispositivo electrónico que manejamos bem, e cuja disposição espácio-temporal de côr, imagem e movimento podemos entender sem dificuldades. Imaginar é, portanto, criar para entender realidades extra-mentais.
No discurso filosófico contemporâneo – muito especialmente, no interior do movimento fenomenológico iniciado nas primeiras décadas do século XX –, a nossa faculdade criativa por excelência volta a ser ponderada como uma dotação muito especial do humano. Sabia-se então pouco, ao nível de detalhe, sobre o desenho orgânico e a capacidade reprodutiva de aparelhos perceptivos não-humanos, e por razões de teor histórico-filosófico interessantes (e também de disputas académicas sempre pouco salutares), a faculdade humana de imaginar volta a conquistar os palcos das grandes discussões filosóficas no Velho Continente, durante as décadas de 1920 e 1930.
Em 1936, Jean-Paul Sartre publica o seu primeiro tratado sobre a faculdade da Imaginação (L’Imagination) e, logo em 1940, em L’Imaginaire, volta a discutir o mesmo problema filosófico – desta feita, concentrando-se mais no grande contraponto intencional da faculdade de imaginar, isto é, no imaginado e nas suas várias valências formais e materiais.
O elemento formal desta peculiar capacidade do espírito humano que mais capta a atenção do jovem Sartre é a indelével prova de constante negação de cenários conscientes extra-mentais que a mente humana constantemente produz. Ao contrário do que acontecera em momentos-chave da tradição filosófica moderna, que interpretavam a imaginação como uma faculdade de síntese e cimentação perceptiva, Sartre entende a imaginação como uma força de negação permanentemente renovada de cenários exteriores, e que opera a partir da espontaneidade consciente inerente à própria dinâmica viva do universo mental. Na vigília, como no estado de sono com sonho, a consciência de imagem produz configurações perceptivas não-reais (não actuais) que evidenciam a capacidade criativa contínua da própria consciência e a plasticidade da vida mental ao dissociar-se, espontaneamente, de cenários físicos correntes.
Sartre associa, pois, esta faculdade de imaginar a uma forma de se ser livre – separado de delimitações espácio-temporais imediatas e potencialmente confinadoras. A mais elementar estrutura da consciência – ou cogito pré-reflexivo –, pensa o filósofo, é só uma fina película da experiência de si próprio que permite negar a realidade actual e conceber configurações de mundo alternativas à presente. É esta forma de espontaneidade que é apanágio da própria presença a si e que, quando bem entendida, define o ser da consciência como uma forma irrecusável de liberdade. Liberdade é, pois, liberdade de negar cenários e configurações objetais exteriores correntes. A faculdade do espírito humano que permite um tal manejo espontâneo de imagens – qual livre associação de imagens produzidas pela consciência, na sua dinâmica temporal intrínseca – é a Imaginação.
Num sistema filosófico enormemente complexo – como é o caso do Existencialismo Sartreano, que tem uma dívida problemática conceptual inequívoca para com a tradição filosófica da Modernidade –, a mais primordial forma de existência subjectiva remete sempre para uma faculdade de criar imagens conscientes a partir de cenários objectais não-correntes.
Existir e Imaginar são duas faces de um mesmo processo, que cumpre uma dupla missão no conhecimento humano: a construção de cenários físicos hipotéticos, com um claro correlato na esfera do mental, e o testemunho ou prova da dinâmica interna da consciência de si.
Por: Ana Falcato (Doutorada em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa e Investigadora doutorada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa)
Obra por, Ivan Kramskoy “Christ in the Wilderness [Khristos v pustyne]”
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