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Nota histórica

O homem desde sempre tentou inventar dispositivos que lhe permitissem imitar e controlar a natureza nas suas diversas formas. Há relatos de estátuas gregas do séc. VI-V AEC, movidas manualmente e a ́água e, posteriormente, de estátuas chinesas com movimentos. Durante os sécs. XV a XVII surgem na Europa diversas estátuas com movimento, autómatos, como os artesãos de Huygens, ou os artistas de Jaquet-Droz. O surgimento da eletrônica no início do séc. passado, logo seguido do da informática, veio multiplicar as tentativas de criar modelos e dispositivos artificiais capazes de exibir propriedades semelhantes às que encontramos nos seres vivos. Aliás, e este facto certamente não é fortuito, dois dos investigadores mais influentes na teoria da computação e na engenharia de computadores, Alan Turing e John von Neumman, foram também os pioneiros nas tentativas de criar vida artificial.

Em 1952, Turing publicou um trabalho, que se viria a revelar muito influente, sobre morfogênese, ou seja, o desenvolvimento de formas, em organismos vivos. E aproximadamente na mesma altura, von Neumann desenvolvia (em colaboração com Stanislaw Ulam) o conceito de autómato celular e com base nesse conceito, propôs um modelo abstrato de auto-reprodução, que se viria a revelar um paralelo muito próximo do modelo biológico baseado no DNA.

Também no início da década de 50, o neurologista Grey Walter, construiu robôs móveis, que denominou de tartarugas (com os nomes familiares de Elmer e Elsie), tendo também, com sentido de humor, criado um nome para essa “espécie”, Machina Speculatrix. Cada tartaruga tinha um conjunto de dois comportamentos elementares: após colidir com um obstáculo afastava-se dele e aproximava-se de fontes de luz, exceto se a fonte de luz fosse muito forte, caso em que se afastava. Embora limitadas a estes comportamentos os  pequenos robôs eram capazes, ainda assim, de exibir uma interação complexa com o ambiente e entre si, por exemplo, quando uma delas era portadora de uma fonte de luz.

Pouco antes, em 1943, foi publicado o trabalho de Warren McCulloch e Walter Pitts, com o primeiro modelo de neurônio, que se considera ser a origem das redes neuronais artificiais, que tem atualmente um papel preponderante na área da inteligência artificial e na aprendizagem automática. Mas só em 1987 se começou a usar a designação de Vida Artificial como uma área cientifica, com a realização, em Los Alamos (EUA), do 1º Workshop em Vida Artificial, organizado por Christopher Langton, que tentou reunir investigadores de diversas áreas, Física, Matemática, Informática, Química, Ciências Sociais, etc. com um interesse comum nos temas da Vida Artificial.

Enquadramento da VA

A Vida Artificial (VA), na sua vertente computacional, dedica-se, por um lado, a encontrar modelos computacionais formas de vida naturais, para melhor as estudar e, por outro, a desenvolver abordagens inspiradas em modelos biológicos como uma ferramenta de engenharia para resolução de problemas. O facto de se usar um suporte computacional permite uma liberdade de experimentação e de modelação que não é possível manualmente nem num suporte de origem biológica. Temos a possibilidade de testar modelos que n˜ao se encontram sequer nas formas de vida biológica.

A vertente bioquímica da VA utiliza moléculas de química orgânica para sintetizar formas biológicas. Os principais esforços nesta área tem-se focado em sintetizar paredes celulares, DNA artificial (sintético) de modo a criar células artificiais. Também se podem aproximar desta vertente os trabalhos na área da engenharia de materiais, em que se tentam desenvolver equivalentes de músculos, tendões e membros artificiais.

Podemos considerar que a VA em geral, e a vertente computacional em particular, adota soluções baseadas em múltiplos componentes similares, dotados de autonomia, com controlo local, ao invés de uma qualquer forma de controlo centralizado. Assim, neste tipo de sistemas observa-se, em geral, um conjunto de propriedades emergentes, derivado ao carácter distribuído que apresentam. Em muitos casos o sistema tem também capacidades de adapta¸c˜ao, que podem ser de índole filogenética (evolução da espécie), ontogénica (evolução do indivíduo – crescimento e morfogênese) e epigenética (integra¸c˜ao, em representações internas, de interações com o ambiente – sistema neuronal e imunológico).

Modelos de VA computacional

AC

Os autómatos celulares (AC) constituem um dos modelos básicos na origem da VA e que s˜ao ainda importantes para ilustrar uma série de conceitos importantes. Um Autómato Celular é tipicamente definido por uma grelha, quadricular, em que cada quadrícula, ou célula, é uma máquina de estados. O estado de cada célula altera-se em função dos estados das células vizinhas. A partir de um estado inicial, o funcionamento do AC tem uma evolução temporal, através dos sucessivos estados das células que o compõem.

Os AC s˜ao usados com frequência em simulação, em que o estado de todas as células é observado visualmente (num ecrã). Destacam-se em problemas de física, como modelos de dinâmica de fluidos, de processos de difusão e equilíbrio e estudo de reversibilidade. Também em modelação de propagação de fogos, quer em espaços abertos quer em interiores, se encontram aplicações de autómatos celulares. Para além de simulações, existem utilizações aparentemente pouco evidentes, como seja a de implementação de algoritmos de criptografia, que só vem reforçar o carácter abrangente dos AC. E há até um “jogo”, Game of Life criado por John Conway em 1970, que permite criar formas e depois observar a respetiva evolução ao longo do tempo, com diversos resultados em diferentes zonas do ecrã, desde padrões oscilatórios, a fixos ou a movimento perpétuo.

AE

Outro tipo de modelos de VA muito usado quer em modelação quer em engenharia é o dos algoritmos evolucionários (AE), cujo nome decorre de serem inspirados pelo processo de evolução natural. Este modelo computacional foi criado por Nils Barricelli em meados dos anos 50 do século passado e desenvolvido mais tarde por diversos outros investigadores.

Um AE usa uma população em que cada indivíduo é constituído por um conjunto de genes e é avaliado para se obter a sua aptidão. Em seguida há uma operação de seleção que escolhe alguns dos mais aptos. Esses indivíduos cruzam-se entre si, podendo depois sofrer mutações e irão substituir alguns dos indivíduos da geração anterior, em tudo de um modo simplificado, mas semelhante aos processos de evolução natural. Este ciclo de operações repete se por diversas gerações.

Verifica-se que uma das propriedades mais interessantes dos AE é a sua elevada robustez. Ou seja, um AE consegue ter um desempenho bom, na pesquisa de uma solução para, virtualmente, qualquer tipo de problema. Pode não conseguir atingir o ótimo, mas o nível de soluções a que chega é, muitas vezes, próximo do ótimo. E, porventura, esta propriedade que lhes tem conferido tanta popularidade. Um dos resultados mais espetaculares foi o desenvolvimento em 2006 de uma antena para um satélite da NASA, com uma forma inusitada, mas com um desempenho que satisfez um conjunto exigente de requisitos.

Modelos de colónias de insetos

Os insetos sociais, como por exemplo as formigas ou as abelhas, providenciam exemplos inspiradores para a área da Vida Artificial. Estes animais vivem em colónias ou enxames e manifestam um comportamento coletivo poderoso, que vai muito além do comportamento individual de cada um dos animais que compõem a colónia. Do ponto de vista de modelação, as colónias de insetos baseiam-se muito em teorias de auto-organização, que surgiram nas áreas da física e da química. Em comum existe a situação em que os indivíduos ou partículas tem um comportamento relativamente simples, mas que em interação com outros indivíduos ou partículas semelhantes e com o meio ambiente, dão origem a um comportamento coletivo complexo. São considerados modelos com capacidades semelhantes `as dos AE (referidos anteriormente) para resolução de problemas de otimização.

Em torno da VA

O bioquímico Pier Luigi Luisi notou que tudo o que é vivo é constituído por células. Embora a VA e, em particular, a VA computacional não tenham atingido um desenvolvimento em que se possa considerar que existem formas de vida artificiais, alguns dos princípios básicos da vida natural têm sido a base de construção de modelos e ferramentas computacionais muito úteis. O conceito de célula, como um elemento ativo que, em conjunto com outros semelhantes, dá origem a um sistema complexo e com capacidades coletivas de ordem qualitativamente superior à dos elementos individuais, que é caraterística comum a todos os modelos de VA.

A VA constitui também um campo de estudo apreciável no âmbito da filosofia. Aspetos como o que é a vida?, o que é um indivíduo?, será possível a emergência de comportamentos complexos a partir de componentes simples e com uma tecnologia diferente da bioquímica? são de interesse para a filosofia de há longa data mas têm vindo a poder ser analisados com uma nova perspetiva e com dados que não existiam anteriormente. O filósofo Daniel Dennett advoga inclusivamente que a VA pode servir como uma nova maneira de fazer filosofia, criando os próprios factos e analisando os resultados.

Luís Correia

Professor Catedrático no Departamento de Informática da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa

Imagem Por, Jean-Baptiste Siméon Chardin, “The Atributes of Science [Les attributs des Sciences]

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