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Lúcia aguarda a chegada de Daniel no café escolhido. Recorda a infância. A longa infância dos verões na sua companhia. Os sonhos brilhantes, cintilantes. Sonhavam em ser grandes, enquanto bebiam limonada ou mergulhavam na ribeira. À noite, adormeciam, sob o céu estrelado. A infância ficava-lhes cravada na pele. A felicidade nos pequenos gestos, nos pequenos momentos, que preenchiam, aqueciam e acarinhavam a alma. A preciosidade desses momentos. Perdidos no tempo.

Enquanto aguarda a chegada de Daniel, dá um golo no café quente. Assiste às novidades nas redes sociais. Embrenha-se nas fotografias e vídeos, em permanente atualização. Olha o relógio. Faltam 10 minutos para a hora marcada. Depara-se com a divulgação do encontro nacional de profissionais que projetam o futuro na Inteligência Artificial. Estremece. Revê-a e relê-a. Não tem pensado noutro assunto.

Recorda que, na infância, Daniel sonhava ser bombeiro. Era o que conhecia. Mas talvez optasse pela informática, diziam que dava dinheiro. Seria grande, de qualquer forma. Era assim que devia ser.

Surge-lhe o seu próprio sonho. Sonhava com as grandes cidades. Trabalharia na área de informática. Seria uma grande mulher no mundo das máquinas. Mesmo que fosse a única. Decidiria o seu futuro. Mas, quando falava em computadores, falavam-lhe de bonecas. De como seria boa na área da educação ou da saúde. Seria melhor cuidadora.  Lúcia sonhava com um curso difícil, que seria incapaz de acompanhar, diziam. Acreditou.  Sonhava em ser mulher num mundo de homens. Bem o sabia.

Enquanto aguarda, debate-se. Ultimamente tem-se debatido muito. O sonho perdido, de que foge, persegue-a. E sabe, perfeitamente, que Daniel desenvolve projetos de Inteligência Artificial. Dir-lhe-á, daí a minutos, que estará presente no tal encontro divulgado. Falar-lhe-á, entusiasmado, dos seus projetos. Olha, de novo, o relógio. Faltam  5 minutos.

Os dedos trémulos regressam aos vídeos. Mas o pensamento não lhes presta atenção. O pensamento fica nas frases que a mente insiste em trazer. Daniel projeta o  futuro. Tem nas mãos esse poder. Decide o futuro. E Lúcia gostava de poder decidir esse futuro. Gostava que não lhe tivessem impedido tal escolha. Gostava que não lhe tivessem roubado o sonho.

Remexe a espuma que ficou no fundo da chávena de café em círculos. Daniel chega. Falará entusiasticamente sobre o seu trabalho. Aquele com que Lúcia sonhou. Para o qual ainda vai a tempo de estudar, dirão. Mas ficou o medo e a ansiedade.

Como previra, a conversa toca no ponto temido.

– Também eu adorava ir ao evento, Daniel…

– Não sabia que tinhas curiosidade por esta área.

– Tenho, sempre tive. Não te lembras?

Daniel acena negativamente, algo encolhido.

Lúcia prossegue.

– Não te lembras porque me cortavam o discurso.

– Ainda vais a tempo de estudar e trabalhar na área, sem dar satisfações.

– Agora já a vida está decidida. Não faz sentido.

– Nunca é tarde para perseguir os sonhos, Lúcia. Lembra-te disso.

– Talvez pense no assunto.

– Pensa e fala comigo. Agora tenho de ir, a Sofia espera-me à porta do ginásio.

– Dá um beijinho meu à Sofia.

Despede-se de Lúcia com um beijo na testa e afasta-se. Lúcia recosta-se na cadeira. Remexe a espuma no fundo da chávena de café, que ainda resta. Suspira. A adrenalina ainda lhe percorre o corpo.

Sabe que a Inteligência Artificial se assemelha e reflete o ser humano. Sabe que no futuro se assemelhará e refletirá, inteiramente, o ser humano. Apreendendo todos e cada um de nós. Compreendendo por inteiro as competências humanas: o raciocínio, a aprendizagem, o planeamento, a criatividade. As emoções? O sonho de fazer parte desta realidade vibra dentro de si. Talvez ainda lute pelo sonho. Talvez mude de vida. Talvez a conversa lhe tenha dado a força suficiente para a mudança. A força de vontade de que necessita para recomeçar. Talvez siga, finalmente, o precioso sonho. Talvez não o deixe nas mãos de outros.

Ou talvez decida o futuro pela humanização. Pelas relações sociais. Pelo contacto com as crianças, dia após dia. Através das suas necessidades. Através dos seus próprios sonhos. Para que não os frustrem, como lhe sucedeu.

Lúcia levanta-se. Arruma a cadeira e sai do café. Vira à direita e segue o seu caminho.

Por: Ana Serra Lourenço (Escritora e Jurista)


Imagem, Por, Edouard Manet, “At the Café”

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