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Cartas. São cartas que te escrevi e que ficaram esquecidas, atiradas para dentro de uma  gaveta. Cartas que não pertencem ao hoje que se apresenta nas nossas vidas. Cartas de letras  desbotadas pelo passar do tempo sólido, presas na imensidão do infinito…

Durante os meus anos de devaneios, achei que seria louca por dizer o que sentia.  Sempre tive a ideia obstinada de que devia guardar para mim esses venenos da alma que são os  sentimentos de amor. Mas não era preciso dizer. Não era preciso expôr por palavras aquilo que  escrevi, penosamente, nas folhas já velhas e amarelecidas pela confusão riscada em muitos  calendários.

Não era preciso dizer, porque o meu olhar falava por si. Os meus olhos eram um espelho  e neles podiam ser lidas todas essas frases luminosas de desejos e algo mais. O meu olhar que  me denunciava, o tremer nervoso do meu corpo e a ansiedade que transpunha em cada gesto,  diziam que tu eras a promessa do meu futuro. E que esse futuro podia também ser teu, se me  tivesses dado a mão naquele momento e se juntos tivéssemos agarrado a esperança.

Mas esse momento passou. Soltou-se de mim. Desprendeu-se sem qualquer elo de  ligação, simplesmente porque eu não to dei a conhecer. Porque não cruzámos as barreiras do  mundo de mãos dadas, a agarrar firmemente a esperança fugidia. E hoje só restam as cartas.  Essa meia dúzia de folhas enroladas, onde cada linha promete um trajecto que nunca chegou a  ser trilhado e uma teia de sonhos que nunca se chegou a concretizar.

Agora pergunto-me, sentada à secretária, de caneta na mão, enquanto componho mais  uma carta para ti. Talvez a derradeira, que se juntará a todas as outras, já perdidas na soma de  milhares de horas. Pergunto-me, por que razão a coragem não me atingiu naquela hora e eu  perdi a oportunidade de viver o que me faria vencer, nesta amargura que se espalha no  presente, em ruas desgastadas por contratempos e desilusões. Pergunto-me, como pude ser tão  inútil a ponto de deixar escapar quem seria a saída para estes dias enegrecidos, que se abatem  sobre o telhado de mim. Pergunto-me o que tenho, ao abrir a gaveta e constatar um molho de  cartas secretas que nunca chegaram às tuas mãos.

Acabo de escrever. Não há palavras que cheguem para descrever o que sobrou. Não  existem palavras que façam jus aos meus sentimentos. Um dia, alguém me disse que aquilo que  se sente fica dentro de nós. Que a veracidade dos sentimentos se manifesta somente no nosso  peito e que, por mais palavras que possamos inventar, ficaremos sempre aquém do que  sentimos na realidade.

Por isso, eram apenas cartas. São apenas cartas. Folhas de papel, escritas em horas  excêntricas de venenos da alma. Esquecidas numa gaveta, fechada para todo o sempre. São  cartas desbotadas pelo tempo sólido que passou. Frases escritas com a tinta da alma, presas na  imensidão do infinito.

Nádia Carnide Pimenta

Escritora e Autora das obras, “Da Ponte P’ra Cá” e “Diamante do Sul

Imagem Por, Johannes Vermeer, “Woman Reading a Letter [Brieflezende vrouw]

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