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29 de setembro

Ontem enterrei o meu melhor amigo. Choveu muito, mas nem a chuva afastou aqueles que se quiseram despedir dele. Os rostos tristes, vermelhos de emoção. Tantas lágrimas. Suspiros de incompreensão e incredulidade. Gritos de dor profunda. Ramos de flores. Terra molhada. Notei bem que ele era importante para outras pessoas. Notei que o amavam, que ele tinha tido significado. Era tanta a consternação, o desespero. Senti pena de toda aquela gente que, como eu, o tinha perdido. Senti pena de mim.

Como vão todos continuar a viver sem ele? Como vou viver eu sem ele, sem o meu melhor amigo? Ninguém vai conseguir. Ele era o melhor de nós. Ele era a alegria, a garra, a boa disposição. Era o louco que me fazia sonhar e o sábio que me acudia com sensatez. Tinha o encanto na gargalhada. Vivemos tanta coisa juntos. Devo-lhe tanto. Era metade de mim. Eu não consigo viver sem essa metade. Sou uma flor sem terra, uma ave sem céu.

Peço-lhe que volte. Ele safa-se bem lá no sítio para onde foi, onde agora está. Ele sempre se safou. Mas eu não. Eu safava-me por causa dele, com a ajuda dele. Ele era uma estrela que iluminava o caminho dos outros. O meu caminho agora é escuro, já nem sei se existe. Preciso dele. Peço-lhe que volte, por mim.

Acordei hoje de manhã com um sentimento enorme de culpa. Não devia ter acordado. Se ele não acordou, então que direito tenho eu de acordar? Porque tenho eu direito a viver mais um acordar do que ele? Uma injustiça.

Tive direito a café, a pão torrado com manteiga e doce. A camisa lavada e engomada. Saí de casa, fui trabalhar. O sol a brilhar. Como é que o sol se digna a brilhar? Ontem, enterrei o meu melhor amigo debaixo das nuvens carregadas e, hoje, o sol está esplendido no azul do céu? Algo não bate certo!

Na rua, vi os carros e as pessoas. Tudo igual. Os semáforos com as mesmas três cores. Pessoas ao telemóvel, indiferentes ao trânsito. As bombas de gasolina com fila. Dois homens a trocar insultos. Um casal de mãos dadas. Um bando de raparigas de mochila. Como é possível? O meu melhor amigo foi enterrado ontem! Morreu há três dias! Será que já toda a gente se esqueceu disso?

No trabalho, os colegas preocupados com o que há para fazer, com as metas e objetivos. O chefe atarefado, a transpirar stress. A fotocopiadora continua a trabalhar. O telefone toca sem parar. Apetece-me gritar que o meu melhor amigo morreu.

Parem tudo! Parem! Não percebem que o meu melhor amigo morreu?

Grito apenas para dentro. Venho-me embora, invento uma consulta esquecida. Que se lixe, depois compenso. Fiquei no carro durante horas, de olhos fechados. Desliguei o rádio. Enervei-me quando ouvi as músicas alegres e as vozes. Não sabem que deviam estar todos calados?

Passei junto a uma escola. Os miúdos estavam a sair e os pais esperavam-nos cá fora. A pressa de sempre, porque a seguir há natação ou guitarra ou ténis ou inglês. O abraço do reencontro e a alegria de mais um dia de aulas passado. Os amigos a dizerem até amanhã. Os amigos a sorrir. Porque estão eles a fazer aquilo à minha frente? Para me atirarem à cara que o meu melhor amigo já não sorri, que já não lhe posso dizer até amanhã? Sei lá quando o vou voltar a ver! Sei lá se voltarei a vê-lo!

Liga-me a minha mãe. Pede-me para comprar pão. O meu melhor amigo morreu e ela quer comer? Ignoro este pensamento. Passo na padaria. Tanta gente, tanto pão, tantos bolos, tantos galões, tantos cafés, tanta cerveja. Está tudo igual! Todos a apreciar o belo pastelinho enquanto o meu melhor amigo está enterrado naquela terra fria. Como se dignam continuar a viver sem ele?

Em casa, jantar farto. Na televisão, as notícias. A pivô do jornal da noite, arranjada como sempre. Fala de taxas de juro, de partidos políticos, de uma nova linha de metro na capital. Nem uma palavra sobre o meu melhor amigo morto. Sinceramente…

Digo que estou sem fome, tenho dor de cabeça, vou deitar-me. Não consegui dormir. Levantei-me, vim escrever. Apeteceu-me. Será que é permitido fazer o que me apetece agora que o meu melhor amigo está morto? Fazer o que me apetece é viver. E viver é uma falta de consideração para com ele. Peço-lhe que me perdoe esta falta. Em breve vou deixar de viver. Já ando a planear isso há muito. Antes dele adoecer. Esta ideia está amadurecida, está cravada na minha mente. É uma certeza. Vou matar-me.

26 de dezembro

Passei meses a arquitetar o plano perfeito para morrer. Morrer está a dar-me demasiado trabalho. Mas agora está tudo pronto. Agora é que é. Vivi este Natal e a dor da alma tornou-se ainda mais insuportável. O Natal é horrível para quem vai morrer.

31 de dezembro

Hoje é o último dia do ano. Gostava que fosse o último dia da minha vida. Boas entradas, dizem. Eu entrava bem, mas era para o outro mundo! Champanhe e passas não me faltariam. E desejos realizados.

Mas há algo que me impede de acabar com isto. Não é falta de coragem, não é dúvida, não é medo. É como que uma revolta que me cresce no peito desde o dia em que o meu melhor amigo morreu. Já lá vão três meses…

Não consigo parar de pensar em como tudo continuou, após a morte dele. 5 de outubro, feriado, toda a gente a aproveitar o dia como se nada tivesse acontecido. Dia 31, o Halloween. Fiquei pior que estragado, bebi uma garrafa inteira de tinto para calar a voz que ecoava dentro de mim. 1 de novembro, outro feriado para esquecer. Mais os feriados em dezembro: os meus amigos e conhecidos no shopping ou a tirar mais uns dias de férias para fazer uma viagem. Como nos anos anteriores. Como se o meu melhor amigo não estivesse morto. Chegou o Natal: presentes, comida, cânticos, alegria. Não devia haver nada disso quando morre alguém! Jesus nasceu? Sim, é verdade. Mas também é verdade que morreu o meu melhor amigo! Não podiam ser todos mais comedidos? Jesus não se ia importar…

Hoje à noite haverá novamente festa, comida, brilhantes, fogo de artifício, excessos. Todos a celebrar o ano que vai acabar, esquecendo-se que foi o ano em que ele morreu. Ou celebram o próximo ano, o futuro? Há futuro sem o meu melhor amigo?

Agora, por causa de tudo isto, sou eu que já não sei se quero morrer. Para quê? Chorarão a minha morte nesse dia, um ou dois dias depois. Com sorte, durante uma semana serei falado e lembrado. Haverá a missa do sétimo dia. Mas, e depois disso? Se me matasse hoje, era assunto até ao dia de Reis. Grande coisa! Não tarda vem o carnaval, depois é Páscoa e ninguém vai andar preocupado com a minha morte. Têm a morte de Jesus. Mas eu não sou Jesus. Que pena que tenho de não ser Jesus, ninguém se esquece dele já há dois mil e tal anos. Assim que viesse o calor, no caso de eu ainda habitar na memória de alguém, seria completamente substituído pelas idas à praia, os bronzeados, as férias, os gelados e os biquínis. Não posso vencer os biquínis. E, de repente, volta o frio e é outra vez Natal. E há outra vez presentes, comida, cânticos, alegria. E eu morto. Sem o meu melhor amigo para chorar por mim.

Não posso levar isto para a frente. Não é falta de coragem, não é dúvida, não é medo. É revolta. Não estou preparado para ser esquecido. Sejamos francos: eu seria esquecido bem mais rápido do que o meu melhor amigo. Por mim não se choraria tanto, não se gastaria tanto em flores e cânticos e missas e velas. Como seria fácil esquecerem-me…

1 de janeiro

É ano novo e eu estou vivo. Se Deus quiser, viverei mais uns anos. Não sei quantos. Passei tanto tempo a querer morrer que Deus deve agora estar num dilema. Viverei o que me for dado. Hoje, dia de ano novo, começo a minha vida nova. Uma vida em que procurarei que não me esqueçam tão cedo. Como? Vou descobrindo, vamos ver. Onde apontei o número de telefone daquela mulher simpática que me convidou para um café?

Daniela Rosa Lourenço

Autora do livro “A Estrela do Céu que queria ser Estrela do Mar“ e Escritora dos contos “O Rosto da Tristeza“ e “As Lágrimas do Amor“.

Imagem Por, Martin Mendgen, “Lady in Mourning

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