|| ◷ Tempo de leitura: 3 Minutos ||

I

A inútil alvorada encontra-me em uma
esquina deserta; sobrevivi à noite.
As noites são ondas orgulhosas; ondas
de pesada crista azul-escura cheias de
tons de despojos fundos, cheias de coisas
improváveis e desejáveis.
As noites têm o hábito de prendas e recusas
misteriosas, de coisas meio dadas, meio retidas,
de alegrias com escuro hemisfério. As noites
procedem assim, eu digo-te.
A vaga, nessa noite, deixou-me aos pedaços de
costume e aos fins estranhos: alguns amigos
odiados para conversar, música para sonhos
e o fumegar de cinzas amargas. Coisas sem uso
para o meu coração faminto.
A grande onda trouxe-te.
Palavras, quaisquer palavras, o teu riso; e tu,
tão preguiçosa e incessante beleza.
Falamos e tu esqueceste-te das palavras.
A alvorada estilhaçada encontrou-me em uma
rua deserta da minha cidade.
O teu perfil virou-se, os sons que compõem o teu nome,
a cadência do teu riso; ilustres brinquedos
que tu me deixaste.
Virei-os na alvorada, perco-os, encontro-os;
revelo-os aos poucos cães vadios e às poucas
estrelas vadias da alvorada.
A tua obscura vida preciosa…
Tenho de alcançar-te, de algum modo; guardo esses
ilustres brinquedos que me deixaste, quero o teu
olhar oculto, o teu sorriso real – esse sorriso solitário
e zombeteiro que o teu frio espelho conhece.

II

Com o que posso segurar-te?
Ofereço-te ruas enxutas, pores do sol desesperados,
a lua dos subúrbios maltrapilhos.
Ofereço-te o amargor de um homem que olhou por
muito e muito tempo para a lua solitária.
Ofereço-te os meus antepassados, os meus Homens mortos,
os fantasmas que os vivos honraram em bronze:
o pai do meu pai morto na fronteira de Buenos Aires,
duas balas pelos seus pulmões, barbudo e morto,
Envolto, por soldados, em uma pele de vaca; o avô
da minha mãe – apenas vinte e quatro anos – a
comandar um ataque de trezentos homens no peru,
hoje fantasmas sobre cavalos extintos.
Ofereço-te qualquer perspetiva que os meus livros tenham,
qualquer masculinidade ou humor da minha vida.
Ofereço-te a lealdade de um homem que nunca foi leal.
Ofereço-te esse meu miolo que de algum modo guardei –
o coração central que não lida com palavras,
não comercia sonhos e não é tocado pelo tempo,
pela alegria, pelas adversidades.
Ofereço-te as memórias de uma rosa amarela
vista no pôr do sol, anos antes de nasceres.
Ofereço-te explicações de ti mesma, teorias de ti mesma,
notícias autênticas e surpreendentes de ti mesma.
Posso dar-te a minha solidão, a minha escuridão,
a fome do meu coração; estou a tentar aliciar-te com
incerteza, com perigo, com derrota.

// Imagem Por, Pablo Picasso, “Self-Portrait” (Musée National Picasso-Paris)

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