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Literatura e crime vivem, desde os seus primórdios, numa íntrinseca simbiose.

Ambos são formas de manifestação da natureza humana, que se influenciam mutuamente. A literatura serve-se do fenómeno criminal para base e mote narrativo; já o crime encontra na ficção um fator de inspiração.

Desde a mitologia grega, passando pelos clássicos, como Dante, até à contemporaneidade, o crime e a mente humana que o pratica foram alvo de papel e caneta de muitos autores. De facto, um pequeno olhar sob as grandes tragédias gregas é suficiente para denotar a reiteração em temas como a traição, adultério, incesto e homicídio. Como exemplo, podemos considerar o mito de Medeia, tida como uma das personagens mais aterradoras e fascinantes da mitologia clássica. Tal se deve à sua sede de vingança sem precedentes, que a leva a cometer diversos assassinatos, incluindo o homicídio dos próprios filhos.

Também a vingança como aspeto impulsionador do crime é abordado por Shakespeare, em obras como “Hamlet” e “Otello”, onde descreve a mente humana e as suas vulnerabilidades para com o amor, a paixão e a sede de poder.

Em “Crime e Castigo”, do aclamado escritor russo Fiódor Dostoiévski, a exploração da mente criminosa é realizada a um nível aprofundado. A narrativa segue os dilemas morais e angústia mental da personagem principal, Rodion Raskolnikov, após planear e concretizar o assassinato de uma agiota.

Hoje em dia presenciamos a popularidade do género literário policial, onde agentes e detetives têm por objetivo a resolução de um mistério em forma de crime. Em 2014, o “Rei do Terror”, Stephen King, rendeu-se e escreveu o seu primeiro policial intitulado de “Sr. Mercedes”, mais tarde adaptado para série televisiva.

A criação de um género narrativo exclusivamente dedicado à resolução de um crime em muito se deveu à fama e sucesso de histórias como as de Poirot, Miss Marple ou do famoso detetive Sherlock Holmes, publicadas em finais do século XIX e inícios de século XX, e que perduram até aos nossos dias.

De facto, a presença de crime na literatura é transversal a todas as épocas históricas e contextos. Mas qual a razão para a escrita fazer um uso tão comum de um dos lados mais negros do ser humano?

Patricia Highmith, autora do romance psicológico “O Talentoso Mr. Ripley” dá-nos parte da resposta: “… os criminosos são interessantes do ponto de vista da ficção literária, porque se encontram, pelo menos por um momento das suas vidas, livres nos seus pensamentos e atos; tanto mais que, nem a natureza nem a vida se preocupam com a justiça”.

É essa liberdade de agir que permite ao escritor revelar algo profundo e inerente da natureza humana, fulcral para a criação de uma tensão na narrativa, e consequente evolução da personagem. Muitas vezes, o crime implica também um julgamento, usado como clímax e momento de reviravolta da história, tal como podemos presenciar em “Lá, onde o vento chora”, bestseller relativamente recente de Delia Owens.

Assim, a presença de crime pode ser vista como a peça necessária para o funcionamento da máquina que é a história.

No entanto, o uso do criminoso vai muito mais além de um mero instrumento narratológico: invoca, também, denúncia e reforma social.

Muitos dos grandes escritores apontam fatores como a pobreza, abuso, más condições sociais e injustiças como causas para o crime. Basta pensarmos em “Oliver Twist”, de Charles Dickens, que trata do fenómeno da delinquência juvenil enquanto resposta a uma sociedade que abandona e maltrata os mais desfavorecidos.

Também a denúncia de um sistema penal deficiente e tendencioso é revelada por meio da ficção, que nos mostra a desumanização e falta de equidade da instituição que deve assegurar a ordem e justiça da sociedade. Em “Mataram a Cotovia”, o julgamento de Tom Robinson é crucial para a perceção da influência do racismo na decisão final do júri. Também o sistema de julgamento é levado ao exagero em “O Processo”, de Kafka, onde Joseph K. é condenado e preso por crimes que o próprio desconhece.

Assim, esta mútua influência entre crime e narrativa, apesar de primeiramente parecer um paradoxo é, na realidade, de extrema importância. Não só a literatura retira do fenómeno criminal fundamento e inspiração, como a criminologia, o direito e a sociedade podem ver nas histórias uma fonte de críticas, proposta de mudança, reformas de punição e prevenção para o crime.

Por: Mariana Moura (Estudante de Criminologia e Criadora de Conteúdo)


Obra Por Emily Mary Osborn, “Nameless and Friendless

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