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Quando enveredamos pela temática do pensamento crítico, é comum que a reação do ser humano comum seja de alguma indignação: afinal, todos sabemos pensar, é isso que nos distingue enquanto espécie – para que serve esta pretensão de ensinar a pensar a quem o faz de forma inata?

Verdade, nada a objetar, a não ser um pormenor relevante: saber pensar não equivale, necessariamente, a saber fazê-lo bem, ou, pelo menos, o melhor possível – e a história da filosofia tem sido pródiga em tentativas de estabelecer regras para melhor estruturar e fundamentar o pensamento, das quais uma das mais famosas será o Discurso do Método, de Descartes, entre muitos outros. A criação de uma metodologia para tornar o pensamento mais rigoroso em nada desprestigia a tal capacidade reflexiva que parece distinguir-nos de outras espécies animais: somente a refina e apura, dando-lhe a relevância que merece.

Entendemos o pensamento que designamos de crítico como aquele que se debruça sobre si mesmo, avaliando-se à medida que se constrói, falsificando-se  enquanto se erige, de modo a que o sujeito pensante esteja ao corrente não só das várias perspetivas sobre um dado assunto, o que o fará discuti-las, entender os seus fundamentos e escolher a que considera mais bem formulada, como a que seja capaz de refutar qualquer objeção que se coloque ao seu pensamento. A pedra de toque para que saibamos que temos um pensamento consistente e bem alicerçado é perceber se o discutimos tanto connosco mesmos como seremos capazes de o discutir com outrem.

Porque a verdade é esta: um discurso que não assente num pensamento sólido (que não dogmático, antes coeso e bem alicerçado) irá, certamente, manifestar a impreparação do seu autor, fragilizando-o e fazendo-o temer questões que lhe possam ser colocadas, porque não se sente (nem está) preparado para lhes responder, já que nunca pensou nelas. Neste sentido, alinhamos com um dos mais importantes filósofos do século XX, Ludwig Wittgenstein, célebre aluno do não menos famoso Bertrand Russel, que, na sua obra de maior relevo, o Tractatus Logico-Philosophicus (1921), escreveu: “Weherof one cannot speak, thereof one must be silent”, que traduzimos por “do que não se pode falar, guarde-se silêncio”. Pesem embora as dificuldades de interpretação que, à época, a frase gerou, dando origem a célebres confrontos de pensadores, cremos poder afirmar que, no âmbito em apreço, esta frase pode ser interpretada por nós como tendo uma de duas significações que acabam por ser complementares: (i) se não consegues dizer nada de útil ou interessante acerca de um assunto, provavelmente deverias ficar calado e (ii) se não estás qualificado para discutir algo, deves desejavelmente manter-te em silêncio.

Se todos adotássemos estas duas leituras do sábio aforismo wittgensteiniano, imagine-se a quantidade de discurso vazio que se pouparia, as vergonhas (próprias e alheias) por que não teríamos de passar e o ruído evitado. Ainda assim, porque o “bitaite” está-nos no sangue e é transversal (seja em sede de conversa de café ou em jantares de amigo, venha do sr. Ilídio da esquina ou de altas figuras da nação), havendo pouco a fazer quanto a essa compulsão básica do ser humano, reservemos estes cuidados ao menos para as situações em que, perante um público, estamos sujeitos ao seu escrutínio, e façamos com que as nossas palavras sejam melhores do que o nosso silêncio, como diz o provérbio (alegadamente) indiano.

Entendamos, sobretudo, que, para bem falar em público, não nos basta falar fluentemente, usar bem as palavras e preparar um discurso que cative o auditório. Muito mais do que construir frases de grande impacto, para lá do domínio das técnicas do bem dizer, é preciso saber pensar – e isto não significa menos do que conseguir articular as razões ou os argumentos que fundamentam a nossa posição, conseguir antecipar e perceber a pertinência de eventuais objeções, no sentido de as acolher ou rejeitar, segundo se mostrem ou não passíveis de enriquecer as nossas propostas. Mais: no seguimento de Wittgenstein, é necessário ter sempre presente que o falar só faz sentido se for a expressão de um raciocinar. É esta competência argumentativa que vem a assumir-se como referência de uma oratória simultaneamente eficaz (porque persuasiva e cativante), racional (porque resulta de um processo de pensamento rigoroso e democrático) e livre (porque não decalcado do pensamento ou do discurso de quem quer que seja, para além dos do próprio, obviamente contagiado pelas suas vivências e referências intelectuais).

Em suma: pense-se mais e pense-se melhor!

Antes de nos propormos a verbalizar o resultado do nosso pensamento sob a forma de um discurso que pretendemos apresentar aos demais, sujeitando-nos à sua avaliação, é imperativo que discutamos o tema connosco mesmos e que vamos pondo à prova as nossas crenças e perspetivas, sujeitando-as ao contraditório. Nesta medida, advertem-se as gentes para os grandes benefícios do debate: no café, na internet, no jantar de amigos, proceda-se a essa atividade cada vez mais rara de ouvir atentamente o que os outros têm a dizer, e sobretudo o modo como justificam o que dizem. Encontraremos pessoas que partilham da nossa opinião, mas por razões diferentes (que razões são essas? Complementarão as nossas? Que temos a dizer sobre elas? Por que razão não teremos pensado nelas antes? Haverá mais factos ou razões que desconhecemos?), haverá aquelas de quem discordamos furiosamente (mas experimentemos deixar a ira de lado e tentar perceber de onde vem aquele ponto de vista: não haverá ali nada de pertinente? Consigo refutar todas as suas razões ou vou limitar-me a “concordar em “discordar”, um dito contemporâneo que constitui um dos maiores inimigos da discussão de ideias saudável e profícua?) e haverá ainda os que trazem para a mesa posturas novas, que jamais pensáramos serem possíveis – mesmo porque o ser humano tem a tendência para polarizar tudo em extremos que se excluem mutuamente, o que escamoteia todas as posições intermédias que, arriscamos, seriam a maioria, se nos déssemos ao trabalho de pensar em todos os assuntos com a profundidade que o que nos diz respeito merece.

Se temos alguma certeza na vida, é esta: nunca crescemos tanto, em termos cognitivos e mesmo emocionais, com quem concorda connosco como com as pessoas com quem discordamos visceralmente e que sentem de forma diversa. Porque são estas que nos vão pôr em causa (ou “falsificar”, no dizer de Karl Popper), obrigando-nos a procurar razões melhores para fundamentar o que defendemos e as posturas que adotamos. Fechados na nossa bolha de pensamento e emoções, sem contraditório, tornamo-nos sobranceiros e desconfiados de tudo o que é diferente, correndo sérios riscos de contrair a maior doença de que um intelecto pode padecer: o dogmatismo, que embrutece e nos torna cegos para o que nosso mundo, orgulhosamente só, não está preparado para ver.

Pensar será sempre um verbo preposicional: pensar com, pensar contra, pensar sobre, pensar em – e a alteridade faz inevitavelmente parte dessa ação que nos torna humanos. Deixemo-la, portanto, entrar. E permitamos que nos contrarie, que nos abale, que nos ponha à prova, que nos aplauda (se explicar porquê), que nos contagie, que nos inquiete – esta é a base do pensamento crítico de que dependemos para sermos gente que quer ser mais gente.

Ouçamos, por isso, antes de falar. Ouçamos os outros e as suas razões: quando na sua presença, quando os lemos, quanto investigamos, ouçamo-los e tentemos entender os seus pontos de vista – na medida em que, seja para nos contrariar, seja para nos reiterar, eles terão sempre algo a dizer-nos, porque nos desafiam. De resto, é muito natural que, em conversa (presencial ou lida, porque conversamos com quem lemos), em debate de ideias, tanto os pensamentos dos outros como os nossos podem ser alterados no decurso da conversa, na medida em que surgem ideias que não existiam antes ou se desenvolvem outras que já existiam, mas de forma diferente ou pouco definida.

De algum modo, estamos a contrariar ou, pelo menos, a redesenhar a velha ideia de que a nossa liberdade acaba onde começa a do outro; deste ponto de vista, talvez a nossa liberdade se faça com o outro e não seja castrada pela dele – mas estamos, obviamente, disponíveis para ser contrariadas.

Para rematar, atentemos em breves (mas trágicos) erros, a evitar no processo de pensamento:

  • Confundir factos com opiniões: ainda que nos sintamos absolutamente seguros do nosso ponto de vista, isso nunca fará dele um facto – e usá-lo como tal só fragiliza as nossas conclusões. Uma opinião pode ser imensamente válida e bem sustentada, mas estragaremos tudo se a apresentarmos como algo que não é – um facto;
  • Insistir numa conclusão, quando novos dados ou factos ou eventos vêm contrariar as premissas que nos conduziram a ela – isto é dogmático, é bacoco e em nada contribui para a ideia de coerência, que muitas vezes é confundida com teimosia, já que é função de quem é coerente rever as suas próprias conclusões, e não insistir nelas, sem sustentação, e unicamente para não assumir a necessidade de correção do pensamento;
  • Cair na tentação de não falsificar o nosso próprio pensamento: sejamos advogados do diabo de nós mesmos, sem medos – porque os outros não terão qualquer pudor em contrariar-nos;
  • Decidir o que pensar antes de ponderar todas as posições possíveis a respeito do tema sobre o qual se toma posição, isto é: optar por ser anti-tourada ou pró-tourada, por uma questão de crença (ou herança), em vez de sopesar as várias razões que podem levar-nos a posicionar-nos neste ou naquele sentido;
  • Alinhar com a maioria e defender o que toda a gente defende, que ao menos assim não temos chatices e somos bem-vistos por todos, que nós cá nunca gostámos de confrontos (nem vamos comentar);
  • Escolher ser do contra, porque nunca fomos de alinhar em rebanhos (esquecendo que ser do contra é só alinhar num outro rebanho: o dos que discordam de tudo);
  • Recitar estatísticas como se fossem verdades absolutas: normalmente, só escolhemos as que confirmam o que pensamos, “esquecendo” convenientemente as que nos contrariam;
  • Não receber qualquer pensamento, venha ele de quem vier, sem o fazer passar pelo crivo da nossa própria racionalidade: não só não dói como, as mais das vezes, mesmo que o tornemos nosso, encontramos-lhe falhas ou necessidade de melhorias – e é assim que a história do pensamento humano progride, porque não nos limitamos a propagar o que é de outrem;
  • Não admitir os próprios erros de pensamento e, por conseguinte, não os corrigir, fazendo de conta que eles não existem e esperando que os outros não os notem. (Conselho amigo: vão notar. Sempre.)

Por: Ana Pereira Andrade (Doutoranda em Filosofia, Formadora/Conferencista e Professora na Escola de Direito da Católica Porto)


Obra por, Joseph Wright of Derby, “A Journalist Lecturing on the Orrery

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