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[O texto que se segue contem conteúdo explicito e perturbador]


— A justiça não existe. É uma ilusão inventada pelos homens para sentir que controlam alguma coisa. Mas é mentira, ninguém controla absolutamente nada. — passei a mão pela barba. Olhei para ele. Não se mexeu. — Se o mundo fosse um lugar justo, toda a gente tinha o que merece. Eu nunca tive. Sou constantemente humilhado, menosprezado, ridicularizado. Ninguém me deu o devido valor. Nem a puta da minha mãe, que só me soube parir para depois desaparecer e passar o resto dos dias a meter para a veia enquanto eu era criado naquele convento que era tudo menos divino… — suspirei. Custava-me recordar certas coisas. — Talvez tu também não merecesses isto, mas devias ter-me tratado de outra forma. Com amabilidade, com alguma manifestação de interesse ou carinho. Não custava assim tanto, pois não? Mas pelos vistos és como os outros, só te interessas por foder e mais nada. Para ti sou só mais um corpo que usas para te satisfazeres. — passei a mão pelo rosto dele. Estava frio. — Agora isso também já não importa. As contas estão saldadas. Não posso continuar a deixar que me tratem desta forma, mereço pelo menos respeito.

Levanto-me. Está na hora de ir trabalhar. Olho para trás, para o corpo inerte e silencioso deitado na minha cama. Sorrio. É muito melhor quando eles estão assim, submissos, paralisados, completamente à minha mercê. Assim não me podem magoar com as suas palavras carregadas de fel. Assim sou eu, eu controlo, sou eu que domino. Se a justiça não existe, eu acerto as minhas próprias contas e faço os meus próprios julgamentos.

Tranco a porta atrás de mim. Puxo a maçaneta seis vezes. Um, dois, três, quatro, cinco, seis. Não consigo evitar, é um ritual diário inconsciente e que não controlo, mas que não consigo evitar fazer. Não sou capaz de ir embora descansado enquanto não contar até um número par, para ter a certeza de que a porta fica bem trancada.

São manias, penso, encolhendo os ombros. Quem não as tem?

O dia está bonito, os vizinhos andam cá fora a tratar do jardim. Lançam-me uns olhares curiosos, um cumprimento forçado. Já estou habituado. Olham uns para os outros como se travassem uma conversa à qual eu não tenho acesso, mas da qual sei que sou o assunto principal.

Será que eles sabem?

Olho para trás, para a minha casa. Talvez o cheiro já se comece a sentir. Estou atrasado para o trabalho, mas mais tarde tenho de tratar do assunto. Tenho de me manter discreto, sem chamar a atenção, sem suscitar desconfiança.

Apanho o autocarro. Observo os passageiros: alguns sozinhos, com fones nos ouvidos ou de olhos colados nos seus tablets e telemóveis; outros a conversar com a companhia que trouxeram, mas nem todas as conversas me parecem alegres.

Também gostava de ter companhia, mas já me habituei a ser uma criatura solitária. Por isso, acabo por preferir companhias que não falam. Gosto que me ouçam, que me obedeçam, que não me chateiem. Sei que posso falar de tudo e durante o tempo que quiser, sem ser interrompido por opiniões não solicitadas, risos trocistas ou palavras feias. Assim ninguém me magoa, ninguém me enerva, ninguém se intromete.

Olho para o telemóvel e mando uma mensagem ao João. Naquela noite não nos podemos encontrar, mas no dia seguinte com certeza. Assim que tratar do corpo que tenho deitado na minha cama, terei todo o tempo para o dele.

Suspirando de frustração, bebo de shot o terceiro café da manhã. O quadro em frente dos meus olhos é uma miscelânea de fotografias, mapas e pontos de interrogação. Dói-me a cabeça; massajo-a com as pontas dos dedos.

— Mas que merda… — desabafo para o vazio da sala.

Ainda é cedo, por isso a esquadra está vazia. Ao contrário de mim, uma mulher solteira e antissocial viciada no trabalho, todos os outros agentes e funcionários têm famílias, atividades e toda uma vida fora destas quatro paredes. Já eu sou sempre a primeira a chegar e a última a sair. O Fonseca, o meu parceiro, está constantemente a chatear-me para sair mais, para me divertir e para tentar conhecer alguém novo.

Olho novamente para o quadro, esboçando um leve sorriso. Prefiro mil vezes a companhia silenciosa das minhas vítimas, a simultaneamente excitante e frustrante caça aos criminosos.

Pouso a chávena de café vazia na secretária. Resmas e resmas de folhas e processos amontoam-se vertiginosamente uns em cima dos outros, qual Torre de Pisa prestes a ser derrubada.

Sento-me pesadamente na minha cadeira. Sinto-me especialmente frustrada naquela manhã: um novo assassino começou a operar na zona e esta semana encontrámos o quarto cadáver em dois meses. O modus operandi é igual, assim como a tipologia física das vítimas e o modo como os corpos são descartados.

Ainda não temos a mínima pista acerca de quem o assassino possa ser, mas já concluímos que é, sem dúvida, um psicopata adepto do sadismo. Os corpos são encontrados aos pedaços, em avançado estado de decomposição e com sinais de uma morte bastante violenta.

Ouço uma porta abrir. O Fonseca espreita para o meu gabinete, estendendo-me uma embalagem de croissants:

— Calculei que fosses precisar disto. Hoje vai ser um dia difícil.

— Porquê? — questiono de sobrancelha erguida, pegando na embalagem.

— Encontraram mais um corpo. Temos de ir.

Enfiando um croissant à pressa na boca, visto o casaco e sigo atrás dele. Tranco a porta do gabinete e puxo a maçaneta contando até cinco, ignorando o olhar trocista do Fonseca que me observa do fundo do corredor.

— O que é que queres? — pergunto-lhe, mal humorada. — Não consigo evitar.

Tenho esta mania desde criança e nunca consegui deixar de o fazer. Antes de dormir e de sair de casa ou do gabinete, tenho de verificar se as janelas e as portas estão bem fechadas, contando sempre até um número ímpar. É uma estupidez da qual me envergonho, mas já sou demasiado velha para me preocupar em corrigir isso.

O Fonseca conduz com rapidez pelas ruas ainda adormecidas e envoltas em névoa. Não falamos. Ambos pensamos no que vamos encontrar, antecipando todos os sentimentos associados a este tipo de situações: náusea, horror, revolta, raiva e impotência.

Quando chegamos ao local, os peritos da Polícia Científica já lá estão.

— Detetive Gomes, bom dia. — apresento-me, mostrando as minhas credenciais. — O que é que encontraram?

Um dos peritos encaminha-nos para lá da faixa colocada para isolar a cena do crime. No chão, dentro de um saco de lixo preto, antevejo pernas e braços desmembrados do resto do corpo.

— A cabeça e o tronco? — questiono.

— Não estão aqui. — outro perito aproximou-se dele e segredou-lhe algo ao ouvido. — Para já não conseguimos fazer qualquer identificação da vítima, mas estamos seguros de que se trata de um homem devido aos pelos nas pernas e pela aparência dos dedos e das unhas da mão.

— Como é que encontraram o saco?

— Um morador telefonou a queixar-se do cheiro nauseabundo que vinha deste contentor há já alguns dias. — respondeu, apontando em frente.

Abro o meu bloco de notas e escrevinho os detalhes que acho importantes. O Fonseca dá-me uma cotovelada.

— O que achas?

— É sem dúvida o método de descarte utilizado pelo nosso assassino… — suspiro. Guardo o bloco no bolso do casaco. — Tenho quase a certeza de que é ele e, se eu estiver certa, esta já é a sua quinta vítima.

O Fonseca acende um cigarro e estende-me outro. Aceito, apreciando a calma momentânea da nicotina a entrar-me no organismo. Contudo, é sol de pouca dura, porque a revolta que sinto continua a arder em fogo lento dentro de mim.

Não gosto particularmente desta parte.

Desligo a serra, tirando as luvas ensanguentadas por momentos para limpar o suor que me escorregue para os olhos.

O serviço está quase completo, falta apenas um corte vertical no tronco. Os sacos de lixo também já estão preparados: três, no total, para serem descartados em sítios diferentes e suficientemente longe uns dos outros.

Há sangue por todo o lado, pelo que a limpeza vai tomar-me algum tempo. Respiro fundo. Não gosto desta parte, mas é necessária. Não posso arriscar que os vizinhos comecem a suspeitar do cheiro. Preciso de me manter longe de qualquer desconfiança.

Coloco as pernas e os braços num saco, a cabeça noutro e o tronco no último. Levo o primeiro comigo para o trabalho, para o depositar longe de casa. Os outros irão permanecer escondidos na garagem mais alguns dias.

O saco é um pouco pesado, mas tento manter a compostura e a seriedade enquanto entro no autocarro. Algumas pessoas olham para mim, curiosas, mas o meu olhar duro e grave fá-las desviar imediatamente a atenção para outra coisa qualquer.

Quando saio, finalmente, na minha paragem, enveredo pelo beco mais escondido e procuro um caixote do lixo. Olho em volta: ainda é cedo, não se vê quase ninguém na rua e a maioria das janelas daquelas casas ainda estão fechadas. Atiro o saco para dentro do contentor e afasto-me o mais rápido possível.

Sinto-me um pouco mais aliviado, mas essa sensação é rapidamente substituída por um vazio angustiante. E agora? Com quem poderei conversar agora? Quem abraçarei quando me deitar na cama à noite?

Entro no café e peço o costume. Sento-me perto da janela, a observar o movimento que vai aumentando lá fora. Envio uma mensagem ao João, insistindo para que nos encontremos naquela noite.

Passo a mão pelo cabelo, suspirando de cansaço. Ninguém disse que isto ia ser fácil, mas é o que tem de ser feito. Se a justiça não existe, preciso de encontrar um modo de me sentir vingado, de sentir que consigo obter aquilo de que preciso e que mereço.

Se o mundo não colabora em meu favor, eu jogo este jogo segundo as minhas próprias regras.

Na mesa em frente, uma criança observa-me com os olhos esbugalhados. Faço-lhe uma careta, mas continua a olhar para mim. Viro-me para a janela e analiso o meu reflexo no espelho: tenho uma mancha de sangue na bochecha.

Limpo-a de imediato com um guardanapo, pago a conta e saio dali.

Meto o comprimido na boca e engulo-o com um longo gole de café. Dói-me a cabeça; os sinais da minha exaustão já se fazem sentir.

Encaro o quadro à minha frente, continuando sem conseguir encontrar a mínima pista que me possa dar alguma luz acerca daquele caso. Bailam diante dos meus olhos fotografias de cabeças, pernas e braços.

Até ao momento, só conseguimos identificar uma das vítimas, pois as suas impressões digitais constavam do sistema devido a uma curta estadia na prisão por roubo. Era um homem de 33 anos, dado como desaparecido há duas semanas pela mãe, até lhe termos encontrado a cabeça num contentor dos arredores da cidade.

A única relação visível entre as cinco vítimas é o facto de serem homens e todos, aparentemente, jovens.

Fixo o olhar no ponto de interrogação gigante que desenhei numa folha em branco e encabeça a parte de cima do quadro. Quem será este assassino? Qual será a sua motivação, o que é que o faz matar? E porquê apenas homens? Para quê desmembrá-los?

Levanto-me e viro-me para a janela. Lá fora começa a escurecer e a chuva desfoca o panorama. Ao longe, avisto as luzinhas do outro lado da ponte.

Onde será que ele anda? Será que está a escolher a próxima vítima ou estará ela já em sacos, pronta a ser atirada para um caixote do lixo de uma rua qualquer?

Suspiro. Penso no rosto lívido de choque da mãe da vítima que identificámos quando lhe dei a notícia, no vazio que preenche de súbito os olhos inundados de lágrimas, como se toda a vida lhe tivesse sido arrancada com as minhas palavras. Nem pôde ter o consolo de enterrar o filho com um funeral digno, pois a única parte que encontrámos foi a sua cabeça.

Penso nas outras quatro vítimas, ainda por identificar. Quantas mães, pais e irmãos estarão a aguardar notícias? Quantas namoradas, esposas e filhos estarão neste momento em casa, mortos de preocupação, a olhar em vão para uma porta que não se vai abrir?

Estou na polícia há muitos anos, mas ainda não sei lidar com isso. A minha recompensa é encontrar os culpados, fazer com que a justiça seja cumprida, com que eles paguem pelos seus crimes. Contudo, não acredito em absolvição; alguns pecados, depois de cometidos, são imperdoáveis e impossíveis de apagar. Nem mil anos atrás das grades poderiam limpar a alma de um violador ou de um pedófilo, nenhuma pena é suficientemente grande e justa para uma mãe que mata um filho.

Há crimes que só poderiam ser vingados da mesma forma, pagando-lhes na mesma moeda. Olho por olho, dente por dente.

Afasto-me da janela e olho novamente para o quadro. Tenho de encontrar este filho da puta sádico antes que ele faça mais alguma vítima. Não quero ter de olhar nos olhos de mais nenhum familiar em luto e ver refletida a minha impotência.

Olho para o relógio. O João está a falar há mais de uma hora e a minha paciência está no limite. Já sei tudo sobre ele: o que estudou, onde trabalha, o que fazem os pais, onde vivem os irmãos, os prémios que recebeu e tudo o que conquistou.

Não me fez uma única pergunta e não mostrou interesse em saber nada sobre mim, o que comprova o quão certo estou acerca desta gente. Gente egocêntrica, autocentrada, burros com palas nos olhos que só olham em frente. Vivem com a cabeça enfiada nos próprios umbigos e não são capazes de mostrar respeito e consideração por mais ninguém. Como se fôssemos insignificantes, meros passageiros neste comboio que é todo deles.

Peço a conta e pago. Convido-o para vir comigo para casa e ele aceita de imediato, com o ego a rebentar pelas costuras.

Quando chegamos, tento dar-lhe mais uma oportunidade:

— Aceitas um copo de vinho?

Aguardo uns momentos enquanto o sirvo, com o saquinho do pó entre os dedos. Decido esperar mais um pouco, ver no que aquilo dá. Pode ser que neste ambiente mais íntimo e tranquilo ele saiba tratar-me com a atenção que mereço.

Bebe o vinho de um só trago, pousa o copo e vem direto a mim. Beija-me com força, com urgência, e mete a mão dentro das minhas calças. Deixo-me beijar e acariciar, com a raiva e o ódio a fervilhar dentro de mim.

Eu sabia. Este é só mais um igual a tantos outros. Para eles, mais não sou do que um naco de carne que mastigam e deitam fora. Não lhes sirvo para mais nada.

Agarro-lhe o pescoço com ambas as mãos e ele mete a língua mais dentro da minha boca. Faço força, mas ele nem parece notar. De repente, torço-lhe o pescoço com toda a força. Ouço o estalo e ele cai-me aos pés, os olhos esbugalhados e a boca ainda aberta, com a língua inanimada a espreitar para mim.

Sorrio. Respiro fundo. Já me sinto muito melhor.

Dispo-o com cuidado, dobrando a roupa e pousando-a numa cadeira. Acaricio-lhe um pouco o sexo, mas não muito. Não é isso que me interessa.

Deito-o na minha cama. Sento-me ao seu lado e pego-lhe na mão:

— Assim está melhor, não achas? — pergunto para o silêncio. Acaricio-lhe os dedos que começam a arrefecer. — Agora é a tua vez de me ouvires.

Mais um dia sem progressos. Exausta e frustrada, meto algumas pastas na minha mochila para analisar mais tarde.

Antes de sair, contudo, olho mais uma vez para aquele quadro que já conheço como as palmas das minhas mãos. Talvez repare em algo que me tenha escapado antes.

— Esse assassino deve ser um homem mesmo inteligente. Não acha, doutora?

Olho para trás, sobressaltada. Pelo avançar da hora, achava que já todos tinham ido embora.

— O que é que está aqui a fazer? — pergunto com rispidez, avançando para a porta.

— Trabalho nos arquivos… — gagueja ele, parecendo subitamente nervoso. — Peço desculpa pela intromissão, doutora, mas tenho acompanhado o caso e acho que esse assassino tem algum mérito, pelo menos pela inteligência com que o faz.

Solto uma gargalhada sarcástica, fechando a porta do meu gabinete com força. Um, dois, três, quatro, cinco.

— Engana-se. É apenas mais um filho da puta sádico e sem escrúpulos. — endireito a mochila nos ombros e passo por ele sem olhar na sua direção. — Boa noite.

O silêncio da minha casa recebe-me como um abraço reconfortante. Gosto da solidão, de viver sozinha e livre de explicações, de conversas de circunstância e de regras sociais e de convivência asfixiantes.

Pouso a mochila na mesa da cozinha e ponho uma pizza a aquecer no microondas. Encho um copo de vinho tinto e tiro as pastas da mochila, amontoando-as em cima da mesa. Abro uma ao acaso, passando os olhos na diagonal pelos documentos datilografados. Tento não olhar com muita atenção para as fotografias dos corpos desmembrados; já as observei centenas de vezes, tantas que é-me impossível fechar os olhos sem as ver. Braços, cabeças e pernas sem dono, descartadas ao acaso, como se de carne estragada se tratassem. Como se não fossem seres humanos, pessoas com um passado, com família, com uma história.

Sinto um arrepio na espinha. O microondas apita. Ao levantar-me para ir buscar o prato da pizza, um documento no meio da pasta chama-me a atenção. Volto a sentar-me, analisando com a máxima concentração. É um relatório do Departamento de Tecnologia que contém a análise do telemóvel da vítima identificada. Para nossa sorte, ele esqueceu-se do telemóvel em casa antes de sair pela última vez e a mãe deixou-nos analisá-lo à procura de pistas. No relatório, o perito do Departamento conclui que a vítima tinha uma aplicação de encontros instalada e que a última conversa que teve foi com um homem chamado José. Nessa conversa, tinham marcado um encontro para aquela mesma noite, a noite em que a mãe relata tê-lo visto pela última vez.

Aproximo o rosto do relatório, tentando ver melhor o printscreen da fotografia de perfil do tal José na aplicação. As mãos tremem-me. Julgo reconhecer aqueles óculos, o cabelo escuro e ligeiramente despenteado.

De súbito, recordo a troca de palavras que tive com aquele homem quando saía do meu gabinete: “Esse assassino deve ser um homem mesmo inteligente. Não acha, doutora?”, “Trabalho nos arquivos…”. No momento, a conversa com aquele homem tinha-me provocado apenas uma profunda irritação. Agora, contudo, sentia que me estava a escapar algo muito importante.

Trémula, pego no telemóvel e marco o número do Fonseca. Ele atende ao terceiro toque.

— Estou?

Ouço o remexer dos lençóis e uma voz feminina a resmungar. Olho para o relógio da minha cozinha: são três da manhã.

— Desculpa lá, não tinha noção de que já era tão tarde… — a mulher volta a resmungar e ouço o Fonseca levantar-se. — Queria fazer-te uma pergunta. É possível obtermos uma lista de quem trabalha nos arquivos da esquadra?

— Uma lista? — pergunta ele, bocejando. — Não é preciso, só há um homem a trabalhar lá neste momento.

— A sério? — o meu coração começa a bater mais rápido. Tenho as mãos suadas. — Por acaso sabes como é que ele se chama? Podes dar-me mais algumas informações?

— Agora não tenho a certeza… João? Não, João não… Talvez José? — o Fonseca boceja de novo. — Ouve, isto é assim tão importante? Não podemos falar amanhã…?

— Por acaso sabes onde ele vive? — interrompo.

— Não, mal conheço o tipo. Só o vi algumas vezes. Ele é muito estranho, tem um ar sinistro, mas foi sempre simpático quando falámos.

— Obrigada, Fonseca. Desculpa lá ter-te acordado. Amanhã falamos.

Desligo o telemóvel e passo as mãos pelo cabelo. Talvez tudo aquilo seja uma grande coincidência, mas o meu instinto diz-me que estou a avançar na direção certa.

Ligo o meu computador e acedo ao sistema da polícia. Afinal, não deve ser difícil encontrar a morada de um dos nossos trabalhadores.

Após alguma pesquisa, encontro o nome completo: José Filipe da Silva. Aponto a morada no bloco de notas do meu telemóvel. Um sorriso de triunfo surge-me aos lábios.

O homem chora e eu dou-lhe mais uma vergastada com o cinto. Enfio-lhe uma meia na boca para que os vizinhos não ouçam e amarro-lhe os braços à cabeceira da cama. Ando de um lado para o outro no quarto, seminu, apertando o cinto com força na mão.

Preciso de pensar. Preciso de tomar uma decisão.

A conversa com a detetive deixou-me as entranhas a arder de humilhação e raiva. Também ela teve a coragem de me espezinhar e menosprezar, depois de tudo o que eu fiz. Achava que estava a fazer a diferença, que finalmente alguém ia reparar e saber que eu existo e do que sou capaz. Achava que ia ser louvado, valorizado, ou pelo menos temido. Mas não! Converti-me numa piada, num criminoso igual a tantos outros, um filho da puta sádico e sem escrúpulos.

Solto um grito de frustração e o homem recomeça a chorar. Parece engasgar-se com a meia, mas não me importo. O destino dele já está traçado; mas, ao contrário dos outros, este terá mais espalhafato.

Agora vão ter de reparar em mim.

Lavo a cara com água fria. De súbito sinto-me exausto, a raiva a consumir-me lentamente por dentro. Aproximo-me do homem e tiro-lhe a meia da boca devagar, afagando-lhe as faces húmidas de lágrimas.

— Tem calma. Não grites, eu prometo que não te magoo mais.

Lá fora já amanheceu. Visto uma camisola e tiro as amarras ao homem, pegando nele ao colo como se fosse um bebé.

Desço as escadas para a cave. Está húmida e escura e o homem solta um arquejo de medo.

— Shhh. Tem calma. Já te disse que não te vou magoar.

Ele sabe que eu estou a mentir. O cheiro pútrido e ocre da morte enche-nos as narinas assim que entramos na cave escura. Quando ligo a luz, é possível ver algumas manchas de sangue que não consegui limpar, a mesa de madeira manchada e a serra elétrica ali ao lado, pronta a usar mais uma vez. O homem chora baixinho, o corpo tremendo-lhe de frio e medo.

Pouso-o em cima da mesa, amarrando-lhe os braços por cima da cabeça.

— Isto não precisa de acontecer, sabes? Só precisava que me ouvisses, que me desses alguma atenção. — pego na serra. Ele geme, completamente aterrorizado. — Mas tu também és igual aos outros. São todos igual, todos farinha do mesmo saco. Estou farto, entendes? — sorrio para ele. — Só costumo desmembrá-los depois de mortos, mas tu és especial. Acho que mereces uma partida diferente, não concordas?

Estou prestes a ligar a serra quando ouço uma batida violenta na porta. O homem prepara-se para gritar, mas bato-lhe a cabeça com toda a força na mesa de madeira e ele fica inconsciente.

Pouso a serra no chão e subo as escadas, respirando fundo. Tenho de parecer calmo e normal. Passo as mãos no cabelo e ajeito a camisola, forçando um sorriso. Abro a porta com determinação, como se não tivesse nada a esconder.

— Bom dia. — a detetive e o seu parceiro estão ali. Tento disfarçar a surpresa no meu rosto e abro ainda mais o sorriso. Ela tira as credenciais do bolso e mostra-mas. — Podemos entrar?

— A que devo a vossa visita? — pergunto, controlando o meu tom de voz, tentando aparentar o mais inocente possível.

— Há uma investigação em curso e temos de fazer-lhe algumas perguntas. Mas o José já sabe do que se trata, não é verdade?

Ela passa por mim e entra na minha casa, empurrando-me. O parceiro entra logo atrás dela. A minha primeira reação é pensar em desatar a correr e fugir para longe dali, mas decido-me pelo contrário.

— Aceitam um café?

— Não, obrigada. — responde a detetive de forma peremptória. O seu olhar é frio e duro, tal como o seu tom de voz. — Porque é que me abordou na esquadra ontem? O que sabe sobre os homicídios que têm ocorrido?

Solto uma risadinha baixa. Tento parecer tímido e humilde. Eles não sabem de nada.

— Não sei nada, doutora. Ando a acompanhar o caso nas notícias, como toda a gente. — encolho os ombros. — Calhou eu estar a passar ali e decidi tentar conversar com a doutora sobre isso, mas…

De súbito, ouve-se um grito abafado. A detetive e o parceiro olham em volta e, sem pensar, atiro-me a eles. Ela é mais rápida, pega na pistola e atinge-me na cabeça com ela, atirando-me ao chão. Levo as mãos à cabeça e sinto o sangue empapar-me o cabelo.

— Não se mexa. — ordena-me o parceiro, algemando-me.

A detetive já desapareceu, tentando descobrir a origem do grito. Ouço-a arrombar a porta da cave e descer as escadas a correr, voltando alguns minutos depois com o homem pelo braço. O homem cambaleia ao lado dela, com a cabeça ensanguentada e o corpo nu coberto de marcas do cinto com que lhe bati. Não consigo evitar e solto uma gargalhada. O parceiro da detetive dá-me um murro com toda a força, mas continuo a rir, a boca cheia de sangue e a cabeça a latejar-me da pancada.

— Ganharam! — vocifero, sentindo o sangue escorrer-me pelo queixo. — Apanharam-me, sou eu o assassino que tanto procuravam! Mas nunca vão saber quem são as vítimas e nunca encontrarão os corpos todos. Pensam que são cinco, não é, doutora? — rio-me mais alto. Pareço um louco. Pareço a encarnação do diabo. — Estão enganados! Estão muito enganados!

Sou silenciado por um pontapé em cheio no nariz. Quando acordo, já estou no carro da polícia, a caminho da prisão.

Olho por olho. Dente por dente.

Sou conhecida como uma mulher prática. Solteira, solitária, determinada e direta ao assunto. Cem por cento dedicada ao trabalho e eficiente no que faço. Dura, implacável. Assim me descreveria qualquer pessoa que trabalha ou convive comigo diariamente. Contudo, não julgo que me considerassem vingativa. Nem eu própria tinha essa ideia acerca de mim, pois sempre confiei na justiça acima de tudo. Apanhar os criminosos, pô-los atrás das grades tanto tempo quanto possível ou mesmo para sempre: esse era o meu objetivo, a minha missão.

Contudo, como já disse, há coisas que são imperdoáveis. E nem sempre a justiça dos tribunais é suficiente para aplacar a sede de vingança dos Homens.

Entro nas celas sem qualquer problema. Trabalho ali, todos me conhecem. Ninguém estranha quando digo que preciso de esclarecer mais uns pormenores com o assassino que capturámos naquela manhã.

Caminho devagar, em silêncio, mas com o queixo erguido. Determinada e decidida. Os presos estão a dormir, as luzes estão praticamente apagadas. Nenhum deles dá pela minha presença.

Encontro a cela que procuro. Entro sem dificuldade com a chave que solicitei ao guarda. Aproximo-me dele. Dorme serenamente, a ressonar, como se não tivesse uma única preocupação no mundo. Como se não tivesse quaisquer remorsos.

Levo a mão ao bolso e tiro a faca de serra que trouxe de casa. Tenho de ser rápida. Encosto-lhe a faca ao pescoço, sinto-o acordar e tentar virar-se, mas não consegue. Um único corte, profundo.

Ele não volta a reagir. O sangue sai em golfadas, salpicando o chão e as paredes. Abro-lhe a mão e ponho ali a faca, como prova.

Saio do mesmo modo que entrei, calma e sorrateira.

Entrego o maço de notas ao guarda com a quantia combinada e devolvo-lhe as chaves. Amanhã vão encontrá-lo e tudo apontará para um suicídio. Quando me interrogarem, direi que não sabia que ele levava uma faca com ele e pedirei desculpa por esse detalhe me ter passado despercebido.

Saio da esquadra. O vento fresco da noite revolve-me os cabelos. Sorrio. Sinto-me em paz.

Olho por olho. Dente por dente.

Ana Isabel Fonseca

Escritora e Autora da Novela “Em Branco

Imagem Por, Théodore Géricault, “Head of a Guillotined Man” (Art Institute of Chicago)

2 thoughts on “Cabeça, Tronco e Membros

  1. Muito bom!
    A Ana revela uma proximidade de escrita singular. Consegue facilmente difundir emoções na 1.a pessoa seduzindo, desta forma, toda a atenção do leitor.
    Excelente iniciativa! Parabéns a todos.

    1. Obrigado, ficamos felizes em saber que gostaste . A Ana deu mais uma vez um brilharete e não perdeu o gás depois da primeira novela sublime que foi o “Em Branco

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