|| ◷ Tempo de leitura: 23 Minutos ||

Morri.

Estou morta.

Não sinto dor, não tenho medo, nada nada nada. Calaram-se as vozes, cessaram se os ruídos, não ouço nada nada nada. À minha volta tudo é branco, limpo, puro, estou tranquila, estou em paz. Vejo nuvens, flutuo nelas, ou serei eu também umas delas, não sei, a minha consciência é mais do que eu, saí do meu corpo, sinto-me livre, leve, solta e voo voo voo. Vejo qualquer coisa ao longe, algo brilhante que me chama e eu obedeço porque sou apenas energia, já não tenho corpo nem peso nem matéria, sou energia pura e cósmica e flutuo flutuo flutuo e de repente um clarão, uma faísca de luz que me cega e sinto-me a descer em queda livre, caio caio caio e de seguida uma dor, uma dor fina no braço que…

– Senhora? Senhora?

Abro os olhos devagar, tenho medo, o que se passa?

– Consegue ouvir-me?

Tento focar a visão, um jovem inclina-se sobre mim com um olhar inquisidor, onde estou, quem és, o que se passa? Tento falar, mas não sai qualquer som, tenho a boca seca e dói-me o corpo. Afinal não morri ou morri e isto é o além, mas dizem que depois da morte não se sente dor e a mim dói-me tudo.

– Se consegue ouvir-me pestaneje duas vezes.

Hesitei mas fiz o que ele pediu, consigo ouvir muito bem mas compreender não compreendo nada, onde estou, quem és, o que se passa?

– Esteve em coma vários dias, receávamos que não acordasse. – observou-me o rosto. – Lembra-se do que lhe aconteceu?

Acenei com a cabeça negativamente. Não me recordo de nada, não sei nada, nem sei onde estou nem quem você é nem que diabo se passa, pensei que morrera e afinal estou não sei onde com não sei quem com dores não sei porquê.

– Sabe dizer-me o seu nome?

O meu nome, ora bolas, claro que sei, então o meu nome é… é… caramba, agora não me sai, chamo-me… Entro em pânico, da minha boca sai um grito assustado, agito me nervosamente até que o jovem me coloca as mãos nos ombros e me tenta acalmar.

– Tenha calma, está tudo bem.

Olho para ele novamente, veste uma bata branca e ao peito traz um crachá com o nome “Doutor João Pinto”, se ele é doutor então eu estou num hospital, mas porquê, o que me aconteceu, e por que é que não me lembro do meu nome, o que se passa, alguém me explique.

– Deu entrada no hospital em muito mau estado. O senhor que a trouxe disse que a encontrou na rua inconsciente. Foi agredida, tinha o corpo coberto de hematomas e estava a sangrar da cabeça, com um traumatismo craniano. Esteve internada alguns dias, em coma. – Respirou fundo, olhou para mim. Estava nervoso. – Não fazemos ideia de quem a senhora é. Não trazia nada consigo para além de algum dinheiro, nem documentos nem telemóvel. Visto que o traumatismo craniano foi grave, é natural que experiencie perda de memória e desorientação. Vamos fazer mais alguns exames, mas se tudo estiver bem terei que lhe dar alta.

Agredida

hematomas

traumatismo craniano

perda de memória

Não sei quem sou, não sei como me chamo, não sei o que me aconteceu e não sei como vim aqui parar. E agora o que faço, meu Deus, como posso ter alta e sair daqui se não sei para onde ir, como posso sair para o mundo se não sei quem sou.

Duas enfermeiras ajudaram-me a levantar e a vestir com roupas que desconheço, estenderam-me um porta-moedas cor-de-rosa com dinheiro que supostamente era meu, deram-me um papel e os exames que eu fiz e desejaram-me boa sorte, que tudo corresse bem, e eu sem ter para onde correr, e eu sem saber de onde vim.

E agora, agora estou à porta do hospital, os meus exames estavam bons, só eu é que não me sinto boa, só eu é que não estou nem sou nem sei. Olho à minha volta e não conheço nada, tantas escolhas, tantas possibilidades e eu sem saber o que escolher.

É como oferecerem-me um cofre cheio de dinheiro mas não me darem a chave, é como abrir a gaiola a um pássaro mas cortarem-lhe as asas primeiro, é como deixar um preso sair da cela mas não lhe tirar as algemas. Liberdade condicionada, deve ser isso, não sei se me lembrei ou cheguei lá por raciocínio lógico, de que me serve um cérebro se está vazio, de que me sirvo eu se nem sei quem sou?

Comigo apenas tenho a roupa que trago vestida e algum dinheiro, o suficiente para duas ou três noites numa pensão barata. Viro à direita, quando se está perdido tanto faz a direção que se toma, a algum sítio havemos de ir dar. Sinto-me estrangeira, uma turista no meu próprio país, uma turista com amnésia e pouco dinheiro, olho as pessoas que passam e sei tanto acerca delas como de mim própria, tenho medo e estou confusa e estou sozinha, mas como posso sentir solidão se nem sei quem me faz falta ou o que perdi, como posso ter medo se não sei o que me assusta?

Procuro dentro de mim e não encontro nada, sou uma página em branco, um desenho por colorir, uma casa por mobilar.

Entro na primeira pensão que encontro, pequena e velha, o quarto mais pequeno e mais velho é, também não importa, não tenho nada para arrumar, sou só eu e o meu cérebro vazio. A menina da receção pergunta-me o nome e eu invento qualquer coisa, Raquel, vi numa revista no quiosque ali em frente, é bonito, será que o meu nome também é bonito, será que até me chamo mesmo Raquel, que engraçado, nunca se sabe, alguma vez saberei?

Sento-me na cama e olho em volta, não conheço nada, nem me conheço a mim, que estranho estar num corpo que não reconheço, que estranho ser estranha a mim própria. Penso no que fazer a seguir: ir à polícia? Contactar os jornais ou a televisão? Fazer cartazes com a minha fotografia e esperar que alguém me reconheça, que alguém me procure? E se ninguém me procurar? E se eu já não existir para ninguém?

Deito-me na cama e choro, choro até o sono me embalar e eu não sonhar com nada, quando não se tem memórias não se pode sonhar, o meu cérebro está vazio e o meu subconsciente também, como cadernos por escrever, manequins por vestir, florestas por explorar.

Vazio, branco, fundo, nada.

Os dias sucedem-se e eu vivo sem os viver de verdade, não sei se as horas passam ou se sou eu que passo por elas, faço pouco e reflito muito, vou todos os dias ao mesmo café, mesmo em frente à pensão, sorrio para toda a gente como quem pergunta olá, conhece-me?, leio os jornais, leio revistas, vejo televisão, mas nunca, nem uma vez, nem uma nota de rodapé sobre uma mulher desaparecida que pudesse ser eu. Terei família? Pai, mãe, irmãos ou irmãs, sobrinhos, se calhar até era casada, vejo casais com carrinhos de bebé e penso que se calhar eu também seria uma mulher a empurrar um carrinho de bebé com o marido sorridente ao lado, e o bebé a balbuciar as primeiras palavras, e os dentes a crescer, as cólicas, ou talvez eu tivesse depressão pós-parto e o meu marido já estivesse com outra ou eu nem tivesse marido nenhum, talvez… São tantas perguntas para nenhuma resposta, e eu continuo a sentar-me todos os dias neste café com a esperança de que, talvez, por qualquer acaso ou partida do destino, a minha memória volte e eu perceba quem sou, como me chamo, que boas ações realizei ou que pecados cometi, quem sou, o que fiz, onde estive, para onde queria ir?

Observo a rua enquanto bebo o meu café, não me lembro se gostava de café mas agora sabe-me bem, e de repente um pensamento estranhíssimo, um pensamento que me choca e me magoa e me aperta o coração no peito: enquanto eu não estive, ou estive e não sabia que estava, perdida entre a inconsciência e o esquecimento, a dormir desconhecendo que dormia, enquanto a minha existência se ia apagando aos poucos, a vida seguiu o seu rumo. Os pássaros foram cantando, as pessoas foram correndo, abraçando, quiçá fazendo amor, os bebés continuaram a nascer, os carros não pararam de andar, continuou a haver música e teatro e circo e televisão. Nada parou, nada mudou, nada acabou. A vida seguiu o seu rumo como se eu não fosse mais do que um grãozinho de areia no meio de tantos outros exatamente iguais, como se a minha (não)existência não afetasse absolutamente ninguém, como se a minha pessoa e a minha vida não fizessem diferença nem acrescentassem coisíssima nenhuma ao universo nem alterassem minimamente o funcionamento do mundo.

Tudo segue sem mim, tudo continua.

Imagino o meu marido, será que tinha marido, seria alto e bonito e amável, será que ele me procura ou procurou outra, será que eu tinha filhos e eles choram por mim, ou será que alguém cuida deles e faz com que eles me esqueçam, e os meus pais, como seriam os meus pais, como terá sido a minha infância, na televisão do café uma mulher num programa qualquer da tarde desabafa sobre os seus traumas de infância, os abusos do pai e os maus tratos da mãe, e os meus, será que me abraçavam, será que gostavam de mim, será que fui feliz, será que fui, e o que será que sou? Terei amigos que se encontram para falar e chorar por mim, ou será que me odeiam e estão contentes por eu ter desaparecido, será que tenho irmãos ou irmãs, primos ou primas que me esperam e aguardam notícias minhas, e se um deles entrasse agora neste café e não me reconhecesse, ou não me quisesse ver, e se eu fosse uma pessoa horrível e ninguém sinta a minha falta.

Os pensamentos, tantos e tão intensos, atropelam-se na minha mente e enchem me os olhos de lágrimas. Pestanejo com força, engulo o resto do café, olho em volta, o dia está bonito, o café está cheio, tenho de ter fé, alguém me vai encontrar, alguém me vai reconhecer, alguém vai olhar para mim e exclamar estás aqui, que saudades, tenho andado à tua procura.

– Bom dia. Importa-se que me sente? – uma mulher alta, ruiva e bonita sorri-me com o tabuleiro na mão. Faço-lhe sinal para que esteja à vontade, terminei o meu café, afasto a avalanche de pensamentos e preparo-me para me levantar. – Porque não fica mais um pouco? Não gosto de comer sozinha.

A última coisa que me apetecia era conversar, pois que posso eu dizer, nem nome tenho, e se ela me faz perguntas sobre a minha vida? Mas o seu sorriso era afável e não consegui ser mal-educada, deixei-me estar, olhei para a janela para disfarçar o embaraço.

– Vem aqui muitas vezes?

– Todos os dias.

– Nunca a tinha visto. Como se chama?

– Cristina. – respondi imediatamente, salva pela placa do cabeleireiro do outro lado da rua.

– Muito prazer, Cristina. – sorriu-me. – Eu chamo-me Paula.

Felizmente a Paula adorava conversar: falou sobre si, sobre o emprego, a casa e os cães, o livro que andava a ler, a viagem que fez no ano passado, e eu calada, limitando-me a ouvir educadamente e a lembrar-me de acenar e sorrir. Não me fez qualquer pergunta e eu não fiz qualquer esforço para falar. De certa forma a sua companhia era agradável, mas a verdade é que eu nada sabia, nada conhecia, e o medo de confiar numa completa estranha superava a vontade imensa de desabafar.

A Paula foi embora e pediu o meu contacto, disse que gostou de conversar comigo e que podíamos tomar café mais vezes, e eu aflita, inventando que tinha perdido o telemóvel, esforçando-me para que ela não notasse o meu embaraço, mas que estava hospedada na pensão em frente e que ficaria ali mais uns dias, se ela quisesse podia procurar-me lá.

– Assim farei. – disse ela, sorrindo. – Até breve, Cristina.

Fiquei ali mais um pouco, ligeiramente mais animada por conversar com alguém, com esperança de que talvez, noutro dia, noutra hora, quiçá noutro sítio, alguém me abordasse para conversar e descobrisse que me conhece, que sabe quem sou, que estava à minha procura, e me ajudasse a preencher esta folha em branco, a colorir este desenho, a mobilar esta casa.

No dia seguinte a senhora da pensão chamou-me, disse que tinha uma visita, a Paula estava à porta com um chapéu de palha e um vestido azul, bonita, estava sol e calor e convidou-me para darmos um passeio. Segui-a pelas ruas da cidade, olhando para todo o lado, tentando reconhecer as ruas, as portas, as lojas e as pessoas, tentando acompanhar as palavras dela, que falava e falava e falava, perguntava-me de mim e eu tentava esquivar-me, sorria, mudava de assunto, e ela sempre alegre, sorridente, amável e interessante.

Queria desabafar mas tinha medo, queria dizer-lhe sabes, não sei quem sou, mas o receio estrangulava-me as palavras e eu ficava a ouvi-la, sorria, tentava esquecer-me das minhas perguntas, dos meus vazios, dos meus nadas cheios de tantas dúvidas.

Outros dias se passaram e outros passeios se seguiram, e a Paula conquistava cada vez mais um espaço no meu coração, com a sua alegria e a sua amabilidade, com a sua vontade de me conhecer e de me levar por aí, qual estrangeira recém-chegada a um sítio novo, e para mim tudo era novidade, tudo o que fazia era pela primeira vez, todos os sítios os únicos e os primeiros, todas as pessoas estranhas, todos os cheiros e cores e ruas e portas e janelas e calçadas, tudo novo, tudo estranho, tudo único.

Com o tempo, o meu medo foi desaparecendo no sorriso da Paula, as minhas dúvidas dissipando-se com o som da sua voz e os olhos azuis, tão azuis, faziam-me sentir segura. Ela era um porto seguro e eu, tal barco destruído, perdido e à beira do naufrágio, fui navegando ao seu encontro.

Os encontros, para minha felicidade, iam-se sucedendo, por vezes casuais, por vezes não. Por vezes estava concentrada a ler o jornal, quem sabe se é hoje que encontro uma notícia a procurar por uma mulher desaparecida, quem sabe não aparece a minha fotografia na primeira página e uma família desesperada a oferecer recompensas, e eu perdida nestes pensamentos e de repente a Paula, o riso da Paula e as histórias da Paula, tudo dela e tão pouco de mim. Por diversas vezes ela tentou saber mais sobre a minha vida, sobre a minha família, sobre o meu passado, mas eu encontrava sempre forma de me esquivar, dava-lhe meias respostas e ela aceitava tudo sem protestar, sempre tão simpática, sempre toda sorrisos.

Entretanto o meu dinheiro acabou, tinha de sair da pensão e não tinha para onde ir, não conhecia nada para além daquele café e ninguém para além da Paula, perguntei lhe se sabia onde poderia arranjar um emprego e ela logo respondeu que podia ir trabalhar com ela, na empresa precisam sempre de alguém para arquivar documentos. Mas eu não tinha cartão de cidadão nem documentos nem nada, como iam contratar alguém que não existe?

Enchi-me de coragem, pedi à Paula que se encontrasse comigo e contei-lhe. Nada ocultei: contei-lhe de como acordei no hospital, vazia e confusa, contei-lhe dos hematomas e da perda de memória, contei-lhe da pensão e de como inventei o meu nome, contei-lhe tudo, todos os pormenores, não ocultei nem uma vírgula, os meus olhos encheram-se de lágrimas enquanto falava e nem isso escondi.

Quando terminei a Paula ficou calada, estranho, ela nunca ficava calada. – Vamos sair daqui?

Segui-a em silêncio. Ela não olhava para mim, caminhava com um passo decidido e com os olhos no chão, o que estaria a pensar? Será que devia ter ficado calada, porque confiei nela desta forma?, mal a conheço, fiz asneira. Mordi o lábio com força e limitei-me a segui-la. Virou à esquerda numa rua vazia, parou de repente e voltou-se. Vi-lhe os olhos grandes, enormes, azul-mar ou azul-céu, e de repente deixei de a ver e os lábios dela nos meus lábios, a sua mão na minha nuca, o meu coração às cambalhotas no peito.

Tudo parou, deixei de ouvir, de repente não existia mundo, era só eu e ela e aquele momento que eu não compreendia mas também não me interessava compreender, não queria pensar, e ela continuava, o beijo cada vez mais desesperado, o seu corpo cada vez mais próximo, meu Deus, tanto quanto sei este até pode ser o meu primeiro beijo, continuo a não compreender nada mas bate tudo tão certo.

De repente ela afasta-se e o mundo volta a existir, de repente já se ouvem os carros e as pessoas e a vida continua, o que se passou, porque fizeste isso?

– Porra. – E aqueles olhos azul-mar ou azul-céu arrependidos, envergonhados. – Desculpa, não sei o que me passou pela cabeça.

Fiquei calada, quieta, perdi a capacidade de falar, as palavras atropelavam-se na minha cabeça mas da minha boca nem um som.

– É uma história terrível, nem sei o que dizer. Tens para onde ir?

Acenei negativamente com a cabeça. Ela olhou-me lenta e demoradamente e o meu coração começou a saltar à corda. Aproximou-se, pegou-me na mão e disse:

– Vem comigo.

Caminhámos durante uns minutos, os dedos entrelaçados, as bocas em silêncio, o meu coração a querer explodir e o dela não sei, não compreendo, é mais uma para a lista de coisas que não sei, tenho mais dúvidas do que certezas mas esta mão faz-me sentir segura, pelo menos disso tenho consciência.

Parámos diante de uma porta, ela abriu e fez-me sinal para que entrasse. Dentro uma casa pequena, cozinha, sala e um quarto, uma casa de banho e uma varanda. Na varanda dois cães pequenos a pular de excitação.

– Apresento-te o Pushkin e o Tolstói. – Viu a minha expressão desnorteada e logo um revirar de olhos e uma gargalhada, começava a gostar demasiado daquelas gargalhadas. – Literatura russa.

Preparou-me um café e disse que me sentasse. A casa era acolhedora, a sua presença agradável e os meus pensamentos confusos.

– Podes ficar aqui durante uns tempos, se quiseres. – Protestei, não podia aceitar, mal me conhecia, era um favor demasiado grande. – Oh, é só até encontrares um trabalho e um sítio onde ficar. Não te vou deixar a dormir na rua!

Não tinha outra opção, aceitei, ela sorriu-me e quando dei por mim já tinha aqueles lábios colados aos meus outra vez, a roupa desapareceu, minutos depois já estávamos no quarto, não tinha memória de alguma vez o ter feito mas sabia fazê-lo muito bem, tudo batia certo, tudo fazia sentido. Horas depois, deitada no seu peito, confessei tudo o que o meu coração guardava em silêncio, todo o medo, toda a insegurança, toda a amargura. Ela abraçou-me, beijou-me as lágrimas e sussurrou-me que tudo ia ficar bem, já não estava sozinha, ela ia ajudar-me…

Adormeci.

Os dias seguintes foram um conto de fadas, uma novela daquelas pirosas das quais nos rimos pelo ridículo que representam, uma comédia romântica que só os apaixonados compreendem. A minha vida já era um filme, a começar naquela cama de hospital e a minha mente completamente em branco, o medo e o desespero e a preocupação e a ansiedade de não saber se sou e onde pertenço. Isso já dava um filme do caraças, um filme de terror que me arrepiaria se o visse no cinema, mas alguns filmes de terror têm um final feliz e o meu chegou mais cedo do que imaginava.

Passava os dias em sua casa, a explorar os cantos e os recantos, a brincar com os animais e a refletir sobre tudo o que me acontecera até ao momento, por vezes ainda ia até ao café, sentava-me e esperava, lia o jornal na esperança de que algo me chamasse a atenção, sempre a ver se alguém me procurava, se alguém me conhecia, se alguém sabia quem eu era.

Quando a Paula chegava do trabalho, fazia o jantar para nós e eu observava, ávida por aprender, tentando reconhecer os cheiros e os sabores e os nomes dos ingredientes, pimentos, couves, cenouras, caril, coentros, hortelã, arroz basmati e arroz agulha, tanta coisa de que o meu cérebro não se recordava, tanta coisa que eu não sabia se alguma vez tinha provado. Depois víamos filmes, dávamos longos passeios, ficávamos no sofá ou perdíamo-nos uma na outra, isoladas na nossa bolha cor-de-rosa, no nosso ninho de amor, um amor tão inesperado mas intenso, tão estranho mas com tanto significado.

Depressa consegui aprender a cozinhar sozinha, com a ajuda dos livros de receitas da Paula, e tentava surpreendê-la com jantares e pequenos-almoços românticos. Sentia-me uma criança a aprender tudo de novo, mas cada aprendizagem era uma conquista e cada dia uma vitória. Continuava sem saber quem era, aonde e a quem pertencia, mas sentia que construía um caminho novo, uma mulher nova, com uma história que, ainda no início, já tinha tantos acontecimentos e reviravoltas.

Passado um mês comecei a sair de manhã cedo para procurar emprego, precisava de um sítio onde não me fizessem muitas perguntas e não me pedissem documentos. Encontrei um restaurante nos arredores da cidade, o pagamento era em mãos e em dinheiro, o dono não queria contratos nem obrigações, perfeito, assinei e iria começar na segunda-feira.

Cheguei a casa feliz, queria que a Paula chegasse para lhe poder contar a novidade. Dei comida aos cães, fiz as camas, vivíamos juntas há pouco tempo mas já me habituara àquela rotina familiar, espreitei o frigorífico e pensei no que poderia preparar para o jantar. Não conhecia nenhuma receita de cor, mas se seguisse os livros conseguia cozinhar na perfeição e ela adorava, eu tinha jeito, quem sabe não seria cozinheira antes de alguém me ter apagado?

Fui à sala procurar um livro que ainda não tivesse usado, abri uma gaveta e encontrei um álbum de fotografias. Na primeira página estavam algumas fotografias da Paula em criança, sorridente como sempre, os seus pais e outros familiares. Sentei-me no chão a folhear o álbum: fotografias da sua graduação, festas de aniversário e natais, aquele sorriso perseguia-me, encantava-me. Na penúltima página estava a Paula com o braço por cima de outra mulher, ambas muito bronzeadas e a comer um gelado, ao fundo um farol, provavelmente estariam na praia.

Mas… que diabo? Retirei a fotografia do álbum, levantei-me e fui para perto da janela. Eu reconhecia aquela cara, a mulher que a Paula enlaçava com o braço. Aqueles olhos, as covinhas na bochecha…

Era eu!

Mas como podia ser? Estava uns anos mais nova mas era eu, fui ao espelho e comparei, não havia dúvidas, era o mesmo rosto, a mesma pessoa…

Eu!

Molhei a cara com água fria, estava a tremer, respirei fundo e observei novamente a fotografia. No verso o nome do estúdio fotográfico e o ano, 2018. Aquela fotografia fora tirada há três anos, numa praia algures, eu e a Paula abraçadas e com o mesmo ar apaixonado de hoje, e eu sem perceber nada, o coração a saltar-me no peito e as mãos a tremer, o que é isto, o que se passa?

Sentei-me na sanita e pousei as mãos na cabeça, sentia-me tonta, a fotografia caiu-me das mãos e no chão o meu rosto de há três anos a sorrir, a Paula a sorrir também, o mesmo sorriso e os mesmos olhos azuis, que espécie de história macabra era esta, que filme de terror, que piada de mau gosto, porque é que ela nunca me tinha dito nada, ela conhecia-me, sabia quem eu era, sempre soube, o que se estava a passar?

De repente, como se visse um filme no cinema, diversas imagens dispersas e confusas me passaram diante dos olhos: eu e a Paula na cama, os cães ainda bebés, uma árvore de Natal e os meus pais com a Paula, nós na praia, nós no carro…

Meu Deus, estaria a minha memória a voltar?

Apanhei a fotografia do chão, olhei para ela outra vez e de repente mais uma dezena de imagens: jantares de amigos, um bolo de aniversário e a Paula a apagar as velas, eu a chorar, uma discussão, um olho negro, a Paula com as mãos em mim mas não era um abraço…

Não!

A Paula a bater-me, uma bofetada e depois mais duas, um murro no lábio…

Comecei a chorar, sentia-me nervosa e não sabia porquê, um medo intenso e paralisante, levantei-me para sair da casa de banho, queria ir embora, não podia continuar ali, algo de errado se passava e eu não queria ficar para perceber o quê, um pânico a apertar-me o coração e este a bater cada vez com mais força. Baixei-me para lavar a cara e tentei respirar fundo.

Subitamente, ouvi a porta a abrir.

– Cheguei!

Levantei o rosto devagar. A minha mão tremia, os meus olhos no reflexo do espelho eram da cor do medo. A fotografia estava no chão, a olhar para mim, a sorrir para mim.

– Onde estás?

Pausa.

Silêncio.

Ouvi-a fechar a gaveta de onde tinha retirado o álbum. Os seus passos tornaram se mais suaves.

– Beatriz?

Então era aquele o meu nome. Durante o tempo que vivêramos juntas tínhamos continuado a utilizar Cristina, o nome do cabeleireiro em frente ao café.

Beatriz.

Não compreendia nada, tinha começado a chorar e nem me apercebera, o que se passa, quem é ela afinal?, éramos um casal, então foi ela que me fez isto, e mentiu!, enganou-me, sempre soube quem eu era!

Eu era a Beatriz, tinha um passado e uma história, afinal não estava sozinha no mundo, afinal não era uma página em branco, e ela vivera comigo durante este tempo sem mo dizer, mentindo-me, enganando-me, deixando-me acreditar que eu não existia, que não tinha ninguém, que era a Cristina, que era e sempre seria uma página em branco.

Porquê?

Olhei para o espelho e vi o seu reflexo atrás de mim. Aqueles lindos olhos azul mar ou azul-céu estavam firmes, determinados, enraivecidos.

– Não devias ter visto isso. Desculpa. – antes que eu pudesse reagir, uma dor forte na nuca fez com que a escuridão se abatesse sobre mim.

Depois, o nada.

O vazio.

Ana Isabel Fonseca

Escritora

Imagem Por, Chuck Close, “Big Nude

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