A chuva caía miúda sobre a sua cabeça, escorria-lhe pelo cabelo comprido até aos ombros e seios. Carlota rodou a cabeça, iniciando uma pirueta, e virou-se novamente de frente para a água, que caía do alto da escuridão, só para si. O Bairro do amor tocava alto nos seus fones, e as imagens recentes misturaram-se com a melodia e a voz de Jorge Palma. Embriagou-se com ele, com o que acabava de fazer e rodou, tinha todo o corpo em êxtase, sentia-se finalmente feliz. Abriu a boca para sentir picar-lhe quase sem tocar o fresco surpreendente da água celeste.
Abriu os braços e dançou, estava tão escuro, ninguém a via. Limpava o sangue antes que alguém pudesse dar pelo carmim que a salpicava na pele e roupas. Um relâmpago da sensação da sua faca a penetrar a carne mole da barriga de Fernando invadiu-lhe a mente, era quase só luz e o deslizar suave do metal na gordura, que abriu com facilidade. Mas isto não o mataria, provocava apenas dor e talvez alguns danos menores. Teve de deslizá-la para fora, enquanto ele a olhava em choque, de olhos esbugalhados e boca aberta, como um peixe que não via, preocupado apenas com a dor.
Será que a via? Será que compreendia?
Ou o cérebro desligara-se momentaneamente, porque não queria sentir, porque ninguém quer aceitar que a vida se esvai?
Carlota rodopiou novamente, colocou as mãos no ar, ainda as via mais negras do que estavam, cobertas do sangue que coagulara e secara tão rapidamente. Depois de deslizar a Maria para fora de Fernando, enterrou-a rapidamente mais acima. Bateu em osso, mas Carlota ensaiara, deixou o gume acariciar ou talvez
roçar, não sabia, as costelas do gordo homem, enfiou Maria onde seria o fígado e entrou mais ainda.
Era verdade o que se dizia dos assassinos em série, isto era sexual, toda esta intimidade, e a penetração, a penetração arrepiava-lhe todo o corpo e fazia-a dançar. Era como sexo, mas aqui a morte não era pequena 1La petit mort, a pequena morte, expressão francesa alusiva ao orgasmo, era grande e toda. Da parte do Fernando, pelo menos.
Esfregou as mãos, que ainda estavam elevadas bem lá em cima a apanhar a maior parte da água caída.
Tinha de tirar esta cor de si, podia aparecer encharcada em casa, seria normal, mas não com sangue, nem a fuga da realidade da mãe a conseguiria ajudar a ultrapassar essa visão.
“ No bairro do amor o tempo morre devagar
Num cachimbo a rodar de mão em mão
No bairro do amor há quem pergunte a sorrir
Será que ainda cá estamos no fim do Verão?” 2Trecho da música “Bairro do amor” de Jorge Palma
Carlota riu-se.
– Alguns não, alguns não! – gritou alto para o bairro vazio. – Quem não merece não estará, o Fernando já não está, e mais não conto.
Desta vez não se preocupou por estar a falar sozinha, não estava louca, só feliz, fizera-o. Prometera, planeara e matara o javardo.
– As crianças. – lembrou-se.
Tinha de terminar a sua tarefa, pegou no telemóvel, calou o Jorge Palma, e digitou o 112. Gostava de imaginar que lhe atenderiam com um “Olá, Carlota”, mas as glórias escapavam sempre aos grandes artistas. Talvez quando ela própria morresse, ou, mesmo agora, alguns compreenderiam, muitos até, talvez…
Tudo talvez. Atenderam.
– 112, como posso ajudar?
– Rua Arménio Jorge, 3. Fiz o vosso trabalho outra vez. De nada. Desligou e continuou a dançar.
Prólogo do livro “A Ceifa” por Cláudia Machado (Escritora e Autora da obra, “O Acordo Vol. I”)
Imagem Por, Damien Hirst, “Who’s Afraid of the Dark”
Notas de rodapé[+]
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