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Sebastião de Carvalho havia fugido da cidade à pressa, sem malas ou esperanças – apenas uma: a sua poesia.

Numa velha vivenda, herdada dos seus avós, Sebastião refugiava-se de todo o fracasso que a cidade o relembrava ser. Por entre montanhas e nevoeiro cerrado, podia esquecer o mundo e o seu imenso ruído. O mês de dezembro trazia o frio matinal, o orvalho das folhas, o cheiro a terra húmida. Inspirava o ar frio e expirava as ideias quentes. Bebia a água gélida e comia o pão fresco que o padeiro anunciava com a buzina todos os dias de manhã.

Sebastião achava que viver na velha e isolada Gestosa Fundeira, no centro do país, era o melhor para ele. Passava os dias a escrever poemas sobre a natureza, a ordem do mundo, o seu significado. Enquanto estava em Lisboa, Sebastião sofria um constante rebobinar do quotidiano. Trabalhava num escritório, numa grande empresa. Recebia um salário médio. Os seus infinitos manuscritos haviam sido rejeitados quinze vezes. Ele era um fracasso aos olhos da família e aos dos seus amigos. Um fracasso, que mesmo ele, era normal.

Nada na sua vida o cativava. Desesperado, com o tempo a correr-lhe pelos olhos, fugiu. A sua mãe, preocupada, ligou-lhe imensas vezes. Só obtendo resposta com a instalação de Sebastião, a mãe não ficou aliviada, sabendo que a velha vivenda era muito antiga, fria e empoeirada. Ao que Sebastião lhe respondeu só necessitar de paz e poemas.

A notícia da sua partida percorrera os seus familiares, que muito falaram dele entre si, mas não telefonaram. Para quem era considerado um fracasso normal, Sebastião era agora visto como um fracasso doentio – o que talvez fosse uma conquista na Família Carvalho.

Residia, portanto, um homem de trinta e dois anos, numa vivenda isolada e fria, escrevendo poemas sobre o propósito da vida, tentando ele não a viver.

A princípios de dezembro, Sebastião ansiava um telefonema. Persistente, mas por uma última vez, contactara uma editora. Um livro de setenta poemas sobre as diferentes formas de sentir que um humano experienciaria no decorrer da sua vida havia sido enviado. Sebastião sentia-se radiante. O impetuoso e congelante frio, de repente, era um aquecedor dos seus sonhos.

Sebastião foi ao café da vila, no centro do concelho. Sentou-se e lembrou-se do susto que apanhara com o frio da cadeira quando chegou pela primeira vez ao café em tempo de inverno. Riu-se silenciosamente, escondendo o sorriso, e pediu uma meia-de-leite o mais quente possível.

Quando lhe foi entregue a bebida, ela fumegava. Envolveu as suas mãos em volta da caneca e, pelo reflexo do vidro da entrada do estabelecimento, observou o seu gorro preto, uma madeixa do seu fino e escuro cabelo, os seus pretos e desumanos olhos, a sua pele pálida – quase transparente. Riu-se insanamente outra vez, abafando o som com a sua mão quase morta, em descrença da sua liberdade solitária, de finalmente acreditar que podia ter potencial.

Aos olhos de Sebastião, um poeta não era sano, não era rico, não era feliz. Não porque ele conhecera poetas desse modo, mas porque ele tirara essa conclusão de si próprio como exemplo.

Vasculhou no bolso do seu longo e preto casaco até encontrar o maço de tabaco. Puxou de um cigarro e no outro bolso vasculhou o isqueiro. Um poeta era, também, um fumador, um incompreendido, um mártir.

Acendeu o cigarro e saboreou o queimado e quente fumo. A sua mente levitou e o seu coração acalmou. Sentiu o telemóvel a vibrar no bolso das suas calças e inquietamente quis atender o telefonema. Ao ver que era a editora, Sebastião sentiu o coração acelerar. Um clique poderia definir o seu futuro.

Um representante editorial entregou-lhe a notícia de que a sua obra não seria publicada. Sebastião viu o mundo parar. Não ficou desiludido, não ficou irritado. Cresceu-lhe um vazio, já há muito criado. Levantou-se bruscamente, atirando umas quantas moedas para cima da mesa. O dono do café ainda tentou ir atrás dele, mas Sebastião já partia em alta velocidade no carro.

As curvas eram velozmente percorridas. As subidas e descidas suspendiam a gravidade. O fracassado poeta levara uma chapada de confirmação do que sempre pensou: a minha família tem razão, os meus amigos têm razão. Sebastião limpava as lágrimas antes de sequer caírem. A velocidade na sua condução traduzia-se no pouco amor à vida que ele tinha naquele momento.

Ao chegar a casa, Sebastião batera agressivamente todas as portas: a do carro, a de casa, a do quarto. Deitou-se na cama e começou a agarrar o cabelo com os dois punhos, enquanto gritava pela vida e pelo falhanço. Ninguém acreditava no seu potencial, no seu sonho. Ele remexia-se por entre as almofadas e lençóis. Levantava-se, espancava as paredes, e retornava a deitar-se – até à exaustão.

Passadas umas horas, Sebastião acordara do cansaço deprimido, confuso e com uma latejante dor de cabeça. As nuvens haviam descoberto um pôr-do-sol invernoso. O sol invadia a casa.

Sebastião calçou-se e vestiu o casaco. Saiu de casa e andou pelo quintal. Caminhou em círculos. Ainda com vontade de prantar, apercebeu-se estar demasiado exausto para expressar emoções. Ao ver o nevoeiro cerrado a engolir as casas da serra, decidiu ir buscar lenha. Entrou na pequena sala cimentada onde os avós guardavam robustos troncos de madeira, lar de infinitas teias de aranha, e retirou uns quantos para um cesto de verga.

Carregou a lenha para a sala e colocou-a dentro da salamandra. Tirou umas quantas acendalhas e pô-las entre os troncos. Uma no lado esquerdo, outra a meio e uma no lado direito. Pegou nos fósforos, frios e húmidos, e raspou uns quantos até um deles afoguear se. Sebastião ficara maravilhado ao ver a lenha a pegar fogo. O crepitar e o calor que emanava o arder prendera a atenção dele durante meia hora. Uma meia hora pensativa, sobre a qual viajou pelo seu passado.

Ele era um menino trágico. Nasceu e cresceu em constante fantasia, até que colidiu com o mundo. Achou que a sociedade era doentia. Uma doença que o infetava. Eventualmente, teve de conviver com tudo o que ele desprezava – era corrosivo.

As suas recordações foram interrompidas pela vibração do seu telemóvel. A mãe de Sebastião decidira ligar-lhe por videochamada. Ele levantou-se de ao pé da lareira e foi buscar o telemóvel. A noite e o nevoeiro haviam dominado a paisagem. Ele ligou um candeeiro e posicionou-o para que iluminasse o cenário de onde iria atender. Sentou-se na poltrona, esfregou a cara com as suas mãos e bateu levemente nas maçãs do rosto para que tivessem algum rubor.

Ao clicar no botão verde do ecrã, Sebastião fez o maior sorriso que podia. A mãe saudou o alegremente, começando o seu questionamento. Sebastião sabia que aquela videochamada era um interrogatório sobre o estado do filho. A alimentação, o sono, o frio – tudo deslizava pela boca dele em forma de mentiras, retratando a perfeição. Só que em nenhum mundo as raízes não conhecem todos os ramos, tal como uma mãe, que por mais desconectada, parece ter sempre uma ligação divina. A poesia, o trabalho e o dinheiro entraram na conversa. Ele permanecia calado, enquanto ela esperava uma resposta.

― Sinto-me incompreendido, mãe. Não me sinto bem em nenhum lado. Sinto que é ridículo ter trinta e dois anos e estar a dizer este tipo de coisas. Não sei mais nada. Não sei o que dizer, escrever, sentir, pensar. Parece que não pertenço a este mundo.

A sua mãe, anteriormente angustiada, sentira alívio. A verdade finalmente saíra da boca do filho.

― E achas que ter trinta e dois anos significa não ter sentimentos, meu filho? Que, por fim, tens a vida a cinco estrelas? É uma ilusão que criaste, Sebastião. Eu sei que as coisas parecem ser confusas, mas tens de te agarrar a algo. Sempre te disse isso desde pequenino.

As lágrimas começaram a formar-se nos seus olhos. A mãe reparou no reflexo da luz do candeeiro nos olhos envidraçados. Sebastião não conseguira mais conter todo o seu sofrimento da sua mãe, e acabara por chorar compulsivamente. A mãe observou-o em silêncio, dando espaço para que ele exprimisse as suas emoções.

Sebastião odiava o mundo, odiava a família, odiava os amigos. Sebastião de Carvalho odiava o homem que veio a ser. E, acima de tudo, odiava o êxtase que via entre as pessoas, mas que nunca conseguiu sentir.

― Vem para Lisboa, meu filho. Passa o Natal connosco. Serás recebido com amor e carinho.

― Vou pensar, mãe. Preciso de desligar. Adeus.

― Está bem, meu filho. Fica bem. Beijinhos.

O barulho do desligar da chamada assombrou a casa com um enorme silêncio. Meramente o estalar da madeira e o leve cheiro a queimado preenchiam a casa. Constatou tudo à sua volta e ganhou uma fúria imensa, decidindo que na manhã seguinte partiria para Lisboa.

Sebastião acordara num sobressalto com a lembrança de que iria para Lisboa nessa mesma manhã.

Suspirou e sentiu o peso do mundo sobre o seu corpo. Levantou-se da cama e esfregou os olhos. Aprendera que de manhã era impossível usar a água do lavatório, a não ser que quiséssemos ser congelados.

Ainda de pijama, começou a trancar todas as portas e a fechar todas as janelas. Fez a sua cama e aspirou a casa. Lavou os dentes, a cara, o cabelo e o corpo – tudo com a água quente do banho. E, ao vestir-se, arrumou todos os pertences. Voltou a verificar tudo e, finalmente, saiu de casa. Sebastião havia chegado à aldeia sem malas, e havia partido de lá com duas.

Passou pelo posto de combustível para atestar o carro, e fez-se à estrada. Duas horas de viagem nas quais Sebastião sentira uma ansiedade cada vez maior por cada quilómetro que ele deixava para trás. Lisboa era-lhe os medos, a confusão, a insignificância.

Durante a viagem, Sebastião apreciava o som do motor e da velocidade. Ele raramente ouvia música no carro. Preferia ir concentrado na estrada, mesmo que aproveitasse, por vezes, para pensar em alguns tópicos que lhe cativavam.

Ao entrar em Lisboa, começara a recordar vivamente as emoções associadas a cada canto da cidade. O tal poeta fracassado punha tudo em questionamento. Endoidecia quando refletia sobre a sua amargura – que nunca conseguiu desvendar ser erradamente dele ou com origem na família. Sebastião afligia-se com o quotidiano que, para ele, era sinónimo de Lisboa. As infinitas horas nas paragens de autocarro, o ranger metálico do metro, os desgostos amorosos quando jovem, o vaguear pela calçada escorregadia – dançando uma valsa com o tempo –, tudo lhe criava uma sensação de saudade pelo propósito que nunca conseguiu ver nos aspetos do dia-a-dia que constituíam a sua vida.

Conduziu até à casa dos pais, de onde nunca se movera, e estacionou o carro à beira do passeio. Tirou as duas malas que havia acumulado no seu refúgio e caminhou até à porta do prédio. Hesitou em tocar à campainha no interlocutor e respirou por alguns segundos, quando um vizinho apareceu à porta e segurou-a para que Sebastião entrasse.

Subiu no elevador, ajeitou o cabelo no espelho e saiu. Caminhou pelo patamar em passos quietos até à porta de casa dos pais e, sem hesitar, tocou.

― Sebastião! Chegaste, meu filho!

A sua mãe recebeu-o em êxtase, ajudando-o com as malas – mesmo admitindo não ter força para tal. Sebastião sorria envergonhado, não sabendo o que dizer.

― Ai, meu filho, tinha muitas saudades. Hoje à noite tens de ir passear pela Baixa. As decorações de Natal foram colocadas há duas semanas, nem tanto. O almoço vai ser o teu favorito: cozido à portuguesa.

Sebastião agradeceu e sorriu genuinamente, já não estando acanhado. Ele sabia que a sua mãe se esforçava imenso por ele, mesmo que, no fundo, o achasse patético. Ninguém trabalhador gostava de um sonhador, assim entendia Sebastião. Sempre fora muito criticado pelos seus objetivos. A sua família era muito cética. E, no fundo, o seu maior medo era aperceber-se de que tinham razão, porque significaria que toda a sua vida fora desperdiçada e que nem os seus desejos faziam sentido – o que lhe era um choque, pois neles confiava o leme.

O pai entrou pela sala e pegou nas malas, levando logo de seguida com uma advertência da mãe sobre a sua hérnia. Sebastião avançava vagarosamente pela casa perante aquela desordem familiar.

― “Vá, toca a ir almoçar, se fazem favor! Deixem as malas comigo.” ― Exclamou o pai.

O filho e a mãe riram-se e cederam as malas. Enquanto o pai fora deixá-las ao quarto, Sebastião e a sua mãe sentaram-se à mesa. Esperaram que ele voltasse para se servirem do cozido e iniciar a conversa de circunstância.

― “E então, Sebas…” ― Começou o pai.

― “Odeio quando me chamas isso.” ― Sebastião revira os olhos humoristicamente. ― “Sebastião então. Quais são os teus planos para hoje?”

― “Nada, acho eu. Dormir. Escrever.”

― “Bem…” ― A mãe pigarreia, incluindo-se na conversa com cuidado. ― “Eu e o teu pai tomámos a liberdade de avisar os teus amigos que vinhas para Lisboa hoje.”

― “Porquê?”

― “Oh, filho, não sei… achámos que seria bom para ti. Passeares e ires à Baixa e veres as luzes de Natal…” ― Disse a mãe.

― “Sim! Ao invés de estares fechado no quarto e com as tuas depressões e melancolias. Tu sabes que eu não gosto daqueles teus textos tristes que escreves.” ― Adicionou o pai.

Sebastião permaneceu em silêncio e os pais desviaram o olhar, observando o prato de comida. Ele não se sentia surpreso ou desiludido com as intenções dos pais. Sebastião sabia o falhanço que era ao ter trinta e dois anos e não possuir vida amorosa ou emprego. Ele era meramente um poeta sonhador que chegara à idade limite para sonhar, e os pais faziam questão de lhe mostrar várias vezes.

― “Nós só queremos o teu melhor.” ― Esclareceu a mãe.

― “Com base no meu critério ou no vosso?”

Ao não conseguir obter uma resposta, o filho desistiu de embater contra os pais. A mágica Baixa de Lisboa no Natal e reencontrar-se com os seus amigos pareceu-lhe, naquele momento, uma boa ideia.

― “Olhem… deixem estar. Eu vou ligar-lhes para combinar. Foquemo-nos em comer. Antes que fique sem apetite.”

― “Hoje às 21:00, perto do metro do Chiado.” ― Disse o pai.

― “Nós já marcámos…” ― Envergonhadamente, a mãe acrescentou.

Sebastião continuou a comer, fazendo expressões faciais que indicavam o entendimento da hora e local.

A noite estava fria, mas acolhedora. Que melhor descrição para Lisboa senão melancolicamente aconchegante? Lisboa era, é e sempre será a cidade dos artistas, dos solitários e dos excluídos do mundo.

Sebastião chegara ao Chiado antes da hora combinada e decidira passear pelas redondezas. Encontrou duas velhas amigas – a nostalgia e a saudade. A nostalgia pelo que nunca viveu e a saudade pelo que nunca sentiu. A calçada portuguesa, os artistas de rua, as castanhas assadas, as luzes de Natal e as famílias contentes deixavam-no de coração cheio. O tempo subordinava-se à magia que velejava pelo ar. E, no meio de tanta gente, restava um poeta confuso no meio de muitos outros que percorreram as ruas.

Sebastião sentia uma perdição como nenhuma outra que sentira. Não sabia se se considerava um poeta ou um artista. Não sabia o que estava a fazer em Lisboa ou na aldeia ou no mundo. No entanto, sabia que escrever era a única coisa que lhe trouxera algum contentamento na vida. Mesmo quando odiava o seu emprego, mesmo quando ouvia os comentários da família, mesmo quando pensava não ver futuro ou passado. Ajustou o seu cachecol e o seu casaco, afastando os pensamentos vagos, e verificou o horário no telemóvel. Decidiu lentamente caminhar para o restaurante, respirando lentamente.

Entrou no estabelecimento e viu um dos seus amigos com uma rapariga. Um sorriso desconfortável formou-se inesperadamente na sua face, como resposta ao sorriso do amigo. Já perto da mesa, abraçaram-se com umas pancadas nas costas.

― “Olha o Sebastião! Então, rapaz, como vai isso? Fartaste-te do frio da aldeia?”

― “Sim, sim…”

― “Olha, essa é a minha Alice. Tu estiveste fora algum tempo e ainda não a conheceste. É a minha noiva.”

― “Noiva?”

O Francisco não respondera à pergunta dele, escapando-se para a porta do restaurante ao avistar outros amigos.

― “Olá, Sebastião. Como estás?” ― Perguntou carinhosamente a Alice. ― “Estou bem, e tu?”

De repente, surge uma pancada imprevista no ombro do Sebastião acompanhada de um entusiasmante pronunciar do seu nome.

― “Sebastião! Estava a ver que não, pá!”

― “Afonso.” ― O Sebastião sorri. ― “Não trazes ninguém? Esta é a Alice.”

― “Eu já conheço a Alice!” ― O Afonso gargalha. ― “Como me poderia esquecer daqueles gins tónicos em casa deles?”

Sebastião sorria perante toda a algazarra, tentando esconder a confusão que existia na sua mente. Afinal, aparentemente, ele perdera noivados, compras de casa, gins tónicos. Ele compreendia que a sua ausência lhe provocava essa disparidade entre o tempo social dos amigos e o seu, mas não deixava de se sentir deslocado das suas realidades. O sentimento era-lhe algo indomado e mutável, desvinculando-se da compreensão.

― “Sentem-se, sentem-se. Façam favor. Só falta o Ricardo.” ― Lembrou o Francisco.

― “Atrasado.” ― O Afonso comentou sarcasticamente.

― “Em muitos níveis.” ― O Francisco adicionou, levando a mesa à gargalhada.

Sebastião conhecera o Francisco, o Afonso e o Ricardo no ensino secundário. Eles eram o típico grupo de rapazes traquinas. Todavia, com bastantes capacidades. O Francisco para as matemáticas, o Ricardo para as artes visuais, o Afonso para a análise social e o Sebastião para as letras. Eles complementavam-se e acabavam por ser os quatro muito bons a tudo. Só não eram bons a uma coisa: a ter uma vida padronizada. Sebastião, sempre fora da caixa, finalmente encontrara um grupo onde pertencia – até àquele ponto.

Ao constatar a vida dos amigos, reparou ter ficado preso no tempo. Algo mais em que falhara: a evolução. Sebastião deixara anos da sua vida passar por causa das suas infinitas ruminações. E, agora, nem o grupo onde sempre pertencera lhe era familiar.

O Ricardo chegara apressado com uma rapariga. Ao avistarem-no, fizeram uma algazarra jocosa.

― “Até que enfim!”

― “Olha o desaparecido!”

O Ricardo cumprimentou alegremente o Sebastião durante alguns segundos e rondou a mesa com apertos de mão.

― “Creio ainda não teres conhecido a Eva.” ― O Ricardo dirigiu-se ao Sebastião, aproximando a rapariga dele.

― “Não, não conheço.” ― Ele disse constringido.

Após a chegada do último amigo, o jantar correra normalmente. Algumas piadas, algumas histórias, alguns comentários. Todavia, a vida distante de Sebastião havia sido abordada na conversa. Os seus projetos de escrita, a sua vida amorosa, a sua família – tudo foi questionado, mais perto do final do convívio, com pura curiosidade, dado a sua decisão de fugir sem aviso para o centro do país.

― “Mas no geral, está tudo normal…” ― Concluiu o poeta.

― “Normal? Nada em ti é normal.” ― O Francisco comentou de forma humorística.

― “Até parece que vocês não eram assim.” ― Sebastião acrescentou agressivamente.

Um silêncio criou-se a partir de uma melancolia. De repente, a mesa teletransportara-se para a sintonia antiga entre os quatro amigos.

― “Vocês nem parecem os mesmos.” ― Sebastião acrescentou mais uma vez.

― “Oh…” ― O Afonso girava o vinho tinto no copo, enquanto observava o movimento circular. ― “Tu sabes como é… a vida muda, as pessoas mudam.”

Um desconforto gerou-se na mesa. A lembrança de que o futuro que temiam era agora o seu presente assombrava aquele reencontro.

― “Vou pedir a conta. Alguém vai querer sobremesa ou um café?” ― Perguntou o Ricardo. Após uma breve pausa e uma ausência de resposta, fez um gesto ao empregado de mesa. ― “Pronto. Está encerrado.”

Um papel em cima de uma bandeja prateada apareceu e dividiram o total do jantar pelos amigos. Após pagarem, despediram-se.

― “Tudo de bom.” ― O Sebastião ouviu dos três amigos.

― “Igualmente.”

Os amigos despediam-se um a um com uma expressão nostálgica na face. Pareciam desiludidos, desconectados, tristes. A sua cara exprimia luto e saudade pela amizade que outrora sentiram, e que se aperceberam esta noite do seu desfalecimento.

Os dias até ao Natal passaram rápido. Sebastião passara os dias a escrever. Após o jantar, tinha tido uma inspiração imensa para tentar uma última vez. Finalmente havia refletido e decidido colocar numa balança apenas duas hipóteses: tentar uma última vez ou abandonar de vez.

Toda a saudade e luto que sentiu no jantar manifestou dentro dele uma motivação imensa para canalizar literariamente a angústia que sempre sentiu pela sua vida e pelo seu quotidiano. Sabia-lhe a vingança. Uma vingança de um poeta. Anos de falhanço, anos de pressão familiar, anos de comentários, anos a ser visto como alguém sem seriedade – tudo estava a ser teclado de manhã à noite.

Até que no almoço do dia de Natal, Sebastião arriscou. Quis partilhar com a família a conclusão da sua obra.

― “Mais uma que não vai a lado nenhum.” ― Um tio riu-se.

― “Pelo amor de Deus… cresce, rapaz.” ― Outra tia criticou.

Um burburinho surgiu pela mesa sobre o quão perdido o Sebastião estava. A família comentava sobre já ter idade para ter filhos.

― “Sebastião, desculpa, meu querido. Não incomodes a família. Depois eu vejo esses novos poemas.” ― Aconselhou a mãe.

Sebastião sentira-se como o pobre Ícaro. Foi levado pela ambição e pela crença de acreditarem nele. Ele fora para o quarto guardar o manuscrito e sentara-se na cama.

― “Porra. Tenho trinta e dois anos. O que é que eu estou a fazer?” ― Contestou. ― “Eu só posso ser idiota. Não há outra hipótese.”

Ele fervia de raiva. Sentia o pulsar do seu coração na sua cabeça. Apetecia-lhe destruir tudo à sua volta. Ele fora humilhado, mais uma vez. Agarrou no manuscrito e tentou rasgá-lo com toda a sua força, mas não conseguiu. De ira passou a tristeza. Sebastião começara a chorar silenciosamente como uma criança.

Até à passagem de ano, não se levantara da cama, dizendo aos pais estar doente. No último dia do ano, Sebastião decidira publicar todo o seu manuscrito online. Fartara-se de enviar a editoras, fartara-se de ter esperanças. Já nem tristeza conseguia sentir. Sebastião chegara ao seu ponto de rutura, que era o de indiferença. Indiferença à sua vida, à sua escrita, aos seus amigos, à sua família. A indiferença retirou-lhe o propósito.

Era meia-noite e com os foguetes uma alma subiu. Sebastião de Carvalho suicidara-se, sendo mais tarde considerada a primeira morte do ano. O seu caso ganhara fama. A sua obra fora encontrada online e Portugal leu. A família foi mal-afamada pelo país.

A vingança do poeta foi com a sua morte.

Pedro Alves da Silva

Escritor do conto “A Desconsolação do Porquê” e Autor do livro “As Diferentes Formas de Sentir

Imagem Por, Henry Wallis, “Chatterton” (Tate Britain)

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