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Na casa à beira da colina reinava a escuridão. O silêncio, negro e denso, rodeava-a. A neve caía numa dança contínua e incessante; os seus flocos, leves e brancos como algodão, espalhavam-se e cobriam a casa quieta. As luzes de Natal, penduradas ao acaso, pendiam desligadas sobre as janelas fechadas.

No interior da casa, numa cama ao mesmo tempo fria e quente, Laura e Pedro fingiam dormir. De costas voltadas um para o outro e de olhos cerrados com força, apenas o leve som da sua respiração quebrava, a medo, o silêncio que os envolvia. O ambiente gélido não provinha só da neve que caía lá fora; também entre eles, naquela cama, naquela casa, o frio da separação se tinha há muito instalado.

Laura foi a primeira a despertar de um sono que não dormiu. Desanimada e exausta, dirigiu-se de imediato para a máquina do café, como um náufrago desesperado por uma bóia de salvação. Sentou-se, depois, com a chávena fumegante nas mãos, olhando absorta através da janela para os flocos de neve que teimavam ainda em cair, num ritmo de baile ininterrupto. No bolso do robe, o telemóvel vibrou com o som de uma mensagem: mais uma de quinhentas que o seu editor insistia em enviar-lhe, com um tom cada vez mais rude.

Laura,

Estamos a ficar sem tempo. Esse livro alguma vez vai ficar pronto?!?!

A direção anda a ameaçar-me com a cessação do teu contrato… Só preciso de algo, nem que seja um rascunho, ainda esta semana!!!

Com um suspiro cansado, desligou o telemóvel e pousou-o sobre a mesa. Ao dirigir-se de novo para o quarto, antecipando mais um dia passado no refúgio dos seus lençóis, tentou não olhar para o computador e as folhas espalhadas pela sua secretária. No fundo, sentia-se culpada; sabia que, como escritora de renome que era, tinha obrigações a cumprir, não só para com o editor e seus chefes, mas, acima de tudo, para os seus tão fiéis leitores. Os seus romances e dramas familiares, tão apreciados por serem semelhantes a muitas vidas reais, eram aguardados com expectativa todos os anos. Isto sucedia, sobretudo, na época natalícia, onde Laura andava sempre a viajar entre cidades, participando em lançamentos, sessões de autógrafos e eventos de promoção dos seus livros.

Naquele ano, contudo, nada disso iria acontecer. Não havia livro para lançar, nem autógrafos para dar, nem eventos nos quais participar. A sua veia de escritora, antes tão criativa e pulsante de imaginação, parecia ter secado por completo.

Instintivamente e sem pensar, levou a mão à barriga; também ela seca e vazia. Como poderia Laura voltar a escrever, voltar à sua vida, depois de tamanha perda?

Há meses que não se olhava ao espelho; o contraste entre o presente e o passado era demasiado doloroso, quase palpável. Antes da perda, a sua pele tinha o calor do sol, um brilho intenso morava nos seus olhos e os cabelos morenos e encaracolados emolduravam-lhe o sorriso sempre aberto e radiante. Porém, naquele momento, era apenas uma versão desbotada de si mesma. Uma sombra, um fantasma. A palidez substituiu-lhe o viço da juventude, os seus olhos outrora brilhantes eram agora janelas opacas para a tristeza e a exuberância dos cabelos transformou-se num emaranhado de fios desalinhados e descoloridos pelo peso da dor.

Deixou-se cair pesadamente na cama, embrulhando-se nos lençóis ainda mornos. Olhou para o lado; o marido já lá não estava. Suspirou, terminando de um só gole o resto do café que já lhe arrefecia entre as mãos.

Para além dela, também Pedro tinha mudado irreversivelmente. Sempre fora um homem resiliente, desde os tempos na escola em que se conheceram e Laura admirava a sua inteligência e a sua visão tão clara e concreta do futuro, sempre com foco nos objetivos que, inevitavelmente, acabava por conquistar. Agora, no entanto, ao olhar para ele, via apenas um homem curvado pelo peso das preocupações, afundado em papéis e contas que eles já não conseguiam pagar. Tornou-se um companheiro de silêncios tensos e olhar duro, carregado de mágoa e desamparo.

Laura ainda o amava, isso era certo; sabia que ele também não tinha perdido o amor que lhe tinha. Contudo, perderem o primeiro filho, uma menina que se chamaria Mara, sugara-lhes completamente a energia, a alegria e a vontade de viver que tinham dentro. Eram dois autómatos, dois fantasmas, dois seres invisíveis que habitavam no limbo entre viver e morrer, sobrevivendo apenas na tristeza cinzenta de dias que seriam sempre iguais.

Já não conseguiam conversar. Não sabiam o que dizer, que palavras usar, de que forma deveriam confortar o outro. Recolhiam-se dentro de si, cada um envolto na própria dor, sem saber o que fazer para quebrar essa bolha, para sair desse marasmo.

Estendeu o braço para a gaveta da sua mesinha de cabeceira. Fumar na cama tornara-se para Laura um hábito impossível de eliminar. Não encontrou o maço e, bufando de frustração, desceu à cozinha para o procurar. Da sala, chegaram-lhe barulhos sufocados de algo a arrastar no chão.

– O que é que estás a fazer?

Pedro virou-se abruptamente, quase deixando cair o pinheiro que transportava da arrecadação. Pousou-o suavemente, evitando o olhar de Laura.

– Não podemos continuar assim – murmurou por fim, numa voz vacilante, debruçando-se para tirar a primeira bola da caixa dos enfeites de Natal. – A vida tem de continuar e nós ainda somos uma família, mesmo que já não tenhamos…

– Eu sei, Pedro – interrompeu-o, cruzando os braços junto ao peito e com os olhos a inundar-se de lágrimas. – Mas como podemos seguir em frente quando tudo desmoronou à nossa volta? Como podemos celebrar o que quer que seja quando a nossa filha está morta?

– Podemos pelo menos tentar – insistiu ele, colocando a bola num dos ramos do pinheiro. Virou-se para ela, com os olhos também marejados de lágrimas e os ombros curvados com o peso da dor. – Já perdi a minha filha. Não quero perder também a minha mulher.

Por minutos, que pareceram horas, nenhum deles falou. Então Laura desabou num pranto descontrolado, como se libertasse por fim toda a mágoa que tinha armazenada no seu coração durante todo aquele tempo. O marido aproximou-se de braços estendidos, enlaçando-a num abraço apertado como há muito não davam. Laura molhou-lhe o tecido fino do pijama com as suas lágrimas enquanto Pedro lhe passava a mão pelos caracóis do cabelo, sussurrando-lhe palavras de conforto ao ouvido.

Parecia que, de repente, ambos sabiam precisamente o que fazer e como partilhar todas as emoções que lhes apertavam o coração.

De alguma forma, começavam a encontrar o caminho de volta um para o outro.

Ainda que com o coração pesado e as emoções à flor da pele, Laura acedeu relutantemente em ajudar o marido a montar a árvore de Natal. Foram, assim, retirando das caixas as decorações empoeiradas e, ainda que com sorrisos algo forçados e uma alegria um tanto fingida, foram adornando os ramos despidos da árvore.

Sem que nenhum deles se apercebesse efetivamente, durante aquele processo de enfeitar a casa para o Natal algo começou a mudar. Entre risos nervosos e suspiros melancólicos, o casal foi recordando momentos passados, quando a felicidade ainda os abraçava e a esperança de uma vida a três se desenhava no horizonte. Aos poucos, como a neve que caía devagar lá fora, uma luz tímida de espírito natalício começou a penetrar a névoa da dor de Laura.

Mais tarde, na cozinha, decidiram fazer as rabanadas da famosa receita da avó de Pedro, que ambos sempre adoraram e tinham como tradição fazer juntos. Enquanto cozinhavam, lembravam-se das noites em que riam descontroladamente, das aventuras que partilharam ao longo de todos os anos juntos e dos sonhos que ainda guardavam por concretizar. Partilharam ainda todas as emoções que mantinham caladas dentro de si todo aquele tempo: Laura pôde perceber, enfim, que não foi a única a sofrer com a perda da filha, que também Pedro tinha perdido o chão, que o seu coração também lhe fora arrancado do peito.

Pegou na mão dele, suja de canela e açúcar, e olhou-o bem no fundo dos olhos verdes, brilhantes com um fio de esperança.

– Afinal ainda somos nós, Pedro. Talvez um pouco quebrados, mas não destruídos – disse, com um sorriso triste.

Naquela noite voltaram a dormir abraçados. Laura foi a primeira a adormecer e sentiu-se embalada por um sonho mágico de tão estranho: estava num mundo onírico, repleto de cores suaves e de uma atmosfera reconfortante. Caminhava por um campo de flores, cada pétala irradiando uma aura de paz quando, no horizonte, um brilho ténue começou a tomar forma, transformando-se numa figura familiar. Era sua filha, Mara, pequenina, e Laura sentiu um arrepio quando os seus olhos se voltaram para ela. Tentou correr, os braços ansiosos para segurar a filha que tinha perdido. Conseguia ouvir o bebé rir, um som que ecoava pureza e alegria. Ao longe, escutou uma voz que lhe dizia: Eu estou sempre aqui, mamã, no teu coração. Tu és tão forte. Nunca te esqueças disso. No momento em que Laura se preparava para responder, uma brisa suave agitou as flores ao redor e a imagem da filha começou de súbito a desvanecer-se.

Acordou sobressaltada, com o coração repleto de emoções, mas com uma sensação de paz a invadir-lhe os pensamentos.

Era então manhã de Natal. Laura não tinha comprado nenhum presente para o marido; nem sequer planeava assinalar, de todo, a quadra natalícia. No entanto, o dia anterior parecia ter mudado tudo e, dentro de si e do seu coração, uma ténue chama de esperança começava a surgir.

Ainda o sol nem sequer espreitava no horizonte quando ela se levantou, devagar, e sentada à mesa da cozinha escreveu uma longa carta ao marido. Riu e chorou, perdeu-se até por instantes em pensamentos diversos e recordações longínquas, mas escreveu naquela folha branca tudo quanto tinha no peito e todas as palavras que precisava de lhe dizer.

Ao depositá-la por fim debaixo da árvore de Natal, sentia-se mais leve; atreveu-se até a admitir que poderia ser felicidade aquele calor que lhe preenchia o corpo.

Enquanto a neve, lá fora, persistia ainda em cair, dentro da pequena casa renascia, aos poucos, o calor e o conforto do amor. Sob o brilho ténue das luzes da árvore de Natal, materializava-se a promessa de uma nova jornada, de um longo processo de cura de feridas e de reconstrução de tudo quanto se havia perdido no trajeto.

Ainda que os seus colos estivessem vazios, ainda que a vida lhes tivesse tirado o bem que amavam e o seu tesouro mais precioso, naquele dia de Natal Laura e Pedro descobriram que, mesmo nas noites mais escuras, há sempre uma luz que nos guia de volta uns para os outros.

Ana Isabel Fonseca

Escritora e Autora das novelas “Em Branco”, “Cabeça, Tronco e Membros“ e “Para Além da Herança: O Que se Deixa para Trás

Imagem Por, Thomas Kinkade, “Winter Light Cottage

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