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No caminho para casa, o aroma de rua que se alojava no homem empestava a atmosfera do carro. Também a empestar a atmosfera estava o silêncio de morte. Nem uma palavra se disse em todo o caminho. Aliás, Joaquim disse: ‘Então vamos lá embora’, ao ligar o carro, mas a partir desse momento, nada mais se ouviu além do ruído do motor.

Entraram em casa. Natália primeiro, de seguida Joaquim (novamente carregado com todas as compras) e em último, Ricardo.

O avô Mário estava sentado à mesa. Tinha a pança apertada entre a cadeira e a mesa e um guardanapo preso na gola da camisa, a servir de babete. O seu prato ainda estava vazio, mas a mesa estava decorada com duas travessas, uma de lombo e batatas cozidas, outra de bacalhau com puré.

A avó Glória voltava da cozinha com uma taça de salada nas mãos que deixou cair ao ver o sem-abrigo. ‘AHHHHH! Um ladrão!! Atrás de vocês…’

Joaquim correu para ela, agarrou-lhe as duas mãos e sussurrou:

‘Shhhhiiu, é um mendigo que convidámos para jantar. Chama-se Ricardo.’

Glória suspirou – ‘Vocês querem matar-me do coração, só pode.’ – voltou para a cozinha após recolher os cacos da taça e limpar as folhas de alface do chão.

Sentaram-se à mesa. Natália pousou a mão no braço de Mário e disse: ‘Pai, este é o Ricardo, convidámo-lo para jantar.’

‘Boa noite’ – disse Ricardo, encolhido na cadeira.

‘Boa noite, Eduardo. Está com azar que com este frio não há nada para caçar… Falando em caçadas, olhe que quando eu andava na guerra, uma vez cacei um javali só com as mãos!’

‘Não é Eduardo, pai. É Ricardo. E ele veio pa-ra jan-tar.’

‘Ó homem não comeces a aborrecer a gente com as histórias da guerra’ – interveio Glória que voltava da cozinha e se sentava à mesa.

‘Mateus, jantar!’ – gritou Natália, da mesa para o andar de cima.

Mário inclinou-se para Glória e segredou-lhe ao ouvido:

‘Esta criatura tem um cheiro estranho. Quem é ele?’

Glória arregalou os olhos e engasgou-se com a água que bebia. Recompôs-se. Ignorou o comentário e a pergunta do marido.

‘Quem é esse velho sujo?’ – ouviu-se num grito que vinha das escadas.

Glória, indignada, voltou-se para trás, olhou para as escadas e repreendeu o neto: ‘Mateus, já te avisei para não falares assim do teu avô.’

‘Não estava a falar do avô. Era deste senhor.’

Mateus acabara de descer as escadas. Sentou-se à mesa e afastou a sua cadeira o mais que pôde do homem, que se sentava ao seu lado.

‘Mateus, este senhor não tem casa nem comida, quisemos dar-lhe a oportunidade de passar um Natal feliz.’ – explicou o pai.

Ricardo esforçava-se por ficar cada vez mais invisível e imóvel. Para passar despercebido. Só aceitou o convite porque tinha fome. Aguardava por um pouco de comida e planeava sair o quanto antes. Não só pelos comentários desagradáveis, mas porque começava a sentir que havia qualquer coisa naquela família que não batia certo. No meio daquela loucura toda, pensou que os ratos do caixote do lixo até não seriam má companhia.

Mário segredou novamente ao ouvido de Glória:

‘Este Eduardo é aquele teu primo que fugiu para a Suíça por causa das dívidas?’

Glória revirou-os olhos, suspirou… e ignorou a questão.

‘Fogo, eu queria um Natal fixe, e trazem-me um gajo que não conhecemos de lado nenhum. Ainda por cima com este cheiro que não se pode estar à mesa.’ – reclamou Mateus enquanto cruzava os braços e se enterrava na cadeira.

‘Desculpem… eu nem devia ter vindo. Só tinha fome. Mas eu vou andando.’ – disse Ricardo já a levantar-se.

Joaquim segurou-lhe o braço.

‘Não vai a lado nenhum Ricardo, convidámos de bom grado. Até porque fez uma boa ação por nós, queremos retribuir. E tem fome, eu também tenho. Vamos comer!’

‘Uma vez na guerra, não tínhamos nada que comer, então um colega nosso descalçou-se e…’

‘Mário, por amor de Deus! Estamos à mesa.’ – interrompeu Glória atempadamente.

Ricardo comia com sofreguidão, como se se lembrasse que no dia seguinte nada haveria para comer e quisesse acumular agora todas as reservas possíveis.

Mateus fitava Ricardo pelo canto do olho, enrugando o nariz e tapando-o com o indicador e o polegar.

‘Esta comida não está boa. Nem sabor tem.’ – queixou-se Mateus.

Natália, visivelmente irritada, apontou-lhe o dedo e disse:

‘Se calhar, se destapasses o nariz e te comportasses como um adulto a comida já te saberia melhor. Tens quinze anos, é idade para ter juízo. Não foi essa a educação que te dei. Sempre te disse que as pessoas são para se tratar como gostávamos que nos tratassem.’

‘Se eu estivesse a precisar de um banho agradecia que me dissessem.’ – disse Mateus que de seguida saiu da mesa e foi para o andar de cima novamente.

‘Ó meu menino!!!’ – Natália levantou-se para ir atrás do filho, mas sentiu a mão de Joaquim segurar-lhe o braço.

‘Deixa-o estar, querida. Amanhã temos uma conversa séria com ele. Hoje é noite de Natal.’

‘Que malcriado’ – disse a avó.

Natália encheu novamente o prato de Ricardo com bacalhau e puré e pediu desculpa.

‘Está tudo bem. Não se preocupem. O miúdo queria a família e aparece-lhe um intruso… É normal que reaja mal.’


Segundo Capitulo do conto, “Companhia de Natal”
Por: Simão Crespo João (Apresentador do Podcast Tenho Media Pa’Isto e Criador do Enso Project)

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