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Passaram o dia seguinte sem trocarem um olhar. Sequer uma palavra. Até mesmo um sorriso. E ele apercebeu-se que sentia falta de tudo isso; da alegria daquela mulher ruiva que lhe havia mudado os dias tão repentinamente.

Sempre odiara chuva e esta trouxera-lhe algo do qual não queria prescindir. Após fazê-la chorar é que se apercebera, entendendo o grave erro cometido e o quão arrependido ficara, pois percebera como não desejava realmente a sua partida.

Queria desculpar. Queria vê-la sorrir novamente. Mas como? Jamais havia pedido perdão pelos seus atos a quem quer que fosse, num passado próximo. A época em que o fazia estava muito para lá do que ele se recordava.

Começou a ouvir um assobiar familiar. Ela estava novamente a cantarolar uma canção que ele desconhecia, calma e doce, mas, naquela noite, tão fria.

— Posso?

O feiticeiro olhou por cima do cadeirão na sala de estar, escutando as chamas crepitar na lareira, acesa pelo próprio, mesmo achando a sua presença completamente desnecessária.

— Desculpe. Eu não o queria assustar.

Não dera pela sua presença, era um facto. Estava imerso em pensamentos quando ela entrou naquele espaço e parou diante da porta, de cabeça baixa.

Ele ergueu-se, surpreso com aquela visão. Ela usava o vestido que ele lhe dera. E como estava deslumbrante.

— Não! — pediu quando a viu virar, percebendo que se iria embora. Ela parou com o pedido, não devido a qualquer questão de obediência. — Entra.

Ela deu um breve sorriso e adentrou mais o espaço aquecido, em silêncio. Nem o feiticeiro se atrevera a dizer uma palavra. Ele simplesmente caminhou até aos seus livros na pequena mesa ao lado da poltrona e voltou a folheá-los.

Naquele momento, o único som audível era o dos relâmpagos no exterior, seguidos de um grito assustado. O feiticeiro voltou o seu olhar para Lyla, no chão, agachada e de mãos cobrir a cabeça. Ele caminhou até ela e baixou-se, ajoelhando-se diante da jovem. Quando Lyla levantou a cabeça, ficou surpreendida ao vê-lo ali.

— Estás bem? — Lyla sorriu com a pergunta dele.

— Sim.

Sentia que o feiticeiro estava genuinamente preocupado. Deu uma pequena risada, baixou os braços e sentou-se diante dele.

— Na verdade, é bastante irónico assustar-me com a tempestade.

Ao recordar o dia em que ela chegara ao seu castelo, o feiticeiro era obrigado a concordar. Inicialmente, sem entender o porquê, ela levantou o braço direito e mostrou-se uma marca de nascença em forma de relâmpago, tão fino e delicado apesar de bem visível a quem estivesse minimamente atento.

— É uma marca de nascença. É por causa dela que estou a viajar pelos reinos. — Ele sentou-se também, querendo escutá-la atentamente. — Estou à procura dos meus pais.

— És órfã?

— Não. Enfim, não desde que fui adotada pelos Terun.

Se Lyla parasse para pensar, sentia imensas saudades da sua família desde que partira. Do conforto da mãe, da alegria do pai e dos momentos partilhados com os seus primos e brincadeiras pelos campos. Sentia saudades de uma casa à qual dificilmente retornaria.

— Tenho uma família incrível, que me ama e recebeu como eu tivesse nascido no meio deles.

Encolheu as pernas até ao peito ao escutar outro relâmpago. Quando olhou para o feiticeiro, percebeu como ele parecia prestar atenção à sua história. Sorriu-lhe em agradecimento. Há muito que não falava decentemente com alguém.

— Antes de tomar a decisão de partir, contaram-me como o meu pai me havia encontrado numa floresta, nas montanhas do norte. Por isso é que me dirijo para lá.

Lyla voltou a mostrar a marca ao feiticeiro, a qual, estranhamento, lhe pareceu familiar, mas não se recordava de onde. Podia também ser a sua imaginação e estar a confundi-la com o símbolo de um feitiço. Estava demasiado cansado para pensar nessa questão.

— Talvez alguém reconheça esta marca e me ajude a encontrar a minha família biológica. — Voltou a tapá-la com a manga e sorriu ao de leve. — Amo os Terun, mas também quero saber de onde vim realmente.

— Mas eles abandonaram-te. Por que os queres conhecer? — Ele definitivamente não entendia a sua forma de pensar.

— Quero saber porque me deixaram. Não estou magoada, nem nada que se pareça. Não lhes guardo rancor, nem desejo qualquer mal. Graças a terem-me deixado, tive a sorte de encontrar uma família amorosa e não podia ter desejado outra melhor. Não são abastados, mas dão-me todo o amor que têm.

Ele conseguia sentir o carinho nas suas palavras e o amor que lhes devotava através dos seus olhos, os quais brilhavam à luz das diversas velas.

— Quero apenas saber quem sou, compreende?

Ele limitou-se a assentir. Não podia dizer que entendia os seus sentimentos, mas acreditava nas suas palavras e na bondade de Lyla.

— E tu? De onde vens? — Levou a mão aos lábios, percebendo que, pela primeira vez o tratara de forma menos formal. — Eu… — Ele não lhe diria nada a respeito desse assunto. Não o incomodava tal proximidade. Já não.

— E é necessário saberes algo?

Bastava levantar-se e a conversa terminaria ali. As pernas traíram-no. E ao ver-se ainda diante dele, Lyla ficou aliviada por ele permanecer e não a repreender pela ousadia no trato.

— Eu gostava de saber. Sabes o meu nome, a minha história, e eu não sei quem tu és. Sei somente que és um feiticeiro e…

— Flame Wizard. — Não se apercebera de quando as palavras lhe haviam saído. Só dissera aquele nome que tanto odiava. Esperava ser suficiente.

— Como?

— É assim que me chamam nas aldeias. — Lyla encarou as pernas, já baixas e de lado, medindo as palavras.

— Porque todas as noites vais até a uma aldeia e…

— E destruo os campos, roubo-lhes as fontes de calor. Sim.

Flame não deixou de reparar na escuridão que invadiu o olhar de Lyla. Não lamentava esse facto. Ela havia perguntado e ele limitara-se a responder. No entanto, também não a censurava, muito menos se no final não conseguisse olhar mais para ele.

— Roubo-lhes inclusive a energia para trabalhar nos campos e nos afazeres. Faço-o há vários anos.

— Mas porquê? O que fizeram aquelas pessoas para merecerem isso?

— Aquelas aldeias são a minha fonte de poder. Preciso delas para manter os meus poderes vivos, para eu próprio conseguir viver. É a minha maldição. — Notou como ela ficou subitamente mais atenta. — Sempre possuí magia. Vivia numa aldeia num outro reino, com o meu pai e irmã mais nova, após a nossa mãe falecer no parto — disse, mesmo antes de Lyla conseguir perguntar. Imaginou que o fosse fazer. Ela não deixaria nada por descobrir. — Éramos muito pobres e eu consegui trabalho na casa de um feiticeiro, em troca de alguns confortos, dinheiro e aulas particulares. Tornou-se meu Mestre. E todos os dias via como o seu poder e conhecimento cresciam a olhos vistos e foi isso que começou a ameaçar um outro, seu concorrente. Até ao dia em que o matou. — Lyla levou a mão aos lábios, de sobrolho franzido.

— Que horror.

— Tentei enfrentá-lo com tudo o que o meu Mestre me ensinou. Encantei uma espada e consegui cravá-la no seu coração. — Aquelas palavras arrepiaram Lyla. Ou talvez tivesse sido o relâmpago que rebentara ao longe. — O encantamento funcionou, mas antes de morrer, ele lançou-me uma maldição. Prendeu a minha magia e a minha vida a este reino. Para manter os meus poderes, e a mim mesmo, sob controlo, necessito daquelas aldeias. Como os solos são tão quentes e a vida a pulsar é tanta, a magia sai através de fogo; a principal fonte dos meus poderes. Tentou sempre controlá-las para que nada de grave aconteça, mas é inevitável arderem casas… E alguns homens mais tolos e corajosos acabam mortos no meio da confusão.

As grossas gotas de chuva a bater nas várias janelas do cómodo, eram o único som que se escutava. Como se tentassem chamar a atenção de ambos, começou a piorar, talvez por ambos não terem proferido nenhum som, nem mesmo a madeira a arder.

Lyla encarava o chão, tal como o feiticeiro, como se este trouxesse alguma mudança, alguma reposta para o tormento dele.

— Eu lamento. — Talvez as suas palavras não resolvessem nada, mas Lyla sentiu necessidade de o dizer. — A tua família sabe que vives assim? — Ele negou.

— Nem sabem do meu paradeiro. É provável que pensem que também faleci naquele dia. — Flame passou as mãos sobre o cabelo loiro, colocando alguns fios de cabelo para trás. — E talvez seja melhor assim. Não quero que saibam no que me tornei.

— Entendo — sussurrou Lyla, antes de arrastar um pouco as pernas até ele. — Agora já sei a tua história, mas falta uma coisa.

— Fugires? — Lyla riu-se com vontade, divertida. E ele percebeu que podia ficar a admirá-la de tão perto, para sempre.

— Claro que não! Um nome. O teu verdadeiro nome. — Ela estreitou os olhos, mostrando um sorriso travesso. — Ninguém se chama Flame Wizard.— De repente, Flame viu-a esbugalhar os olhos e sorrir, deixando-o espantado. — Tu sorriste! — Bateu palmas e riu. — Foi pequeno e rápido, mas tenho a certeza que foi um sorriso. — Se ele lhe confirmasse o que vira, ela nunca mais pararia de o tentar fazer novamente. Na verdade, nem se apercebera de o ter feito.

— Alexander Sharp. É esse o meu nome.

Naquele instante, ambos sorriram com vontade, apesar de o de Alexander ser mais discreto. Porém, o sentimento era mútuo. Estavam seguros sobre o que ia nos seus corações.

Ela não queria partir.

Alexander desejava tocá-la naquele instante e o aproximar foi inevitável, como se não comandasse o próprio corpo. Queria sentir um calor que não o das suas chamas, mas sim da doçura da mulher diante de si, com cabelo cor de fogo e olhos mais verde que o campo que o recordavam o seu lar. E estes olhavam para ele com um ternura infinita.

Ele não queria que ela fosse.

Afastou-se de imediato ao perceber o formigueiro que percorria os seus dedos ao tentar tocar na pela de Lyla. Levantou-se de imediato, caminhando até à janela mais próxima. Fugira dela, novamente, e Lyla poderia não entender o porquê, mas ele simplesmente não podia.

Mas a realidade era bem diferente.

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