Vidrei-me nos vidros. Parei no tempo e observei-me nos cacos. Tinha uma remela, mais representativa do meu sofrimento do que as minhas cicatrizes. Resultava dos vários dias sem lavar o rosto para evitar o ardor das feridas após os espancamentos.
Com efeito, o pior não era o durante, era o depois de ser espancada por um homem que amava obsessivamente. Mas ele levava-me a pecar em pensamento, desejando-lhe, por breves momentos, as maiores perversidades. Muitas vezes, no silêncio da noite, a minha mente entrou em convulsões que bradavam aos céus por salvação para ambos. Éramos duas pobres criaturas perdidas num mar revolto, em terra de ninguém que não demónios macabros e agarrávamo-nos irracional e sofregamente um ao outro, como se nos servíssemos de amparo, só que não. Pecávamos ambos, na busca desenfreada de redenção pelo nosso amor. Todavia, era ele que me induzia ao pecado. Eu era o homem da casa, afinal de contas. Éramos Adão e Eva ao contrário.
Debrucei-me sobre os cacos e escrutinei-lhes as arestas impiedosamente qual uma recém-apaixonada que amava um amor impetuoso e sufocante a cada golfada de ar. Escolhi o mais afiado.
Rezei por nós. Mas o dever chamava e ele podia acordar. Tinha de nos impedir de chegar a um ponto sem retorno à luz. Dirigi-me ao quarto, angustiada, trémula, porém firme no meu propósito. Beijei-lhe a testa enquanto o degolei. Vemo-nos no Céu, meu amor. Até logo…
Imagem Por, Chuck Close, “Big Self-Portrait”
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