Naquele lago junto ao rio, longe de tudo e de todos, eles amam-se. O ténue murmúrio das águas límpidas, o suave coaxar de sapos e rãs, a dança solene dos pirilampos contra o céu noturno, a imensa lua cheia que estende os seus raios de prata pelo espelho do lago. E o amor deles. Beijam-se e é quando ele é assaltado pela imagem da outra rapariga, a outra com quem se encontrará mais tarde nessa noite tão serena.
Não a ouvem chegar e não a veem. Mas ela aproxima-se deles, com o seu suave rastejar não passando de pequenos sopros de brisa fresca. Os seus olhos são todos brancos, a sua boca não mais que uma linha fina, o longo vestido pérola envolve-a numa luminosidade celestial. O cabelo cai-lhe pelas costas e com um gesto desinteressado toca-lhe. Aproxima-se do casal. Olha para eles e por um breve instante quase sorri. Até que grita, grita tão alto, numa voz tão aguda, mas tão embaladora ao mesmo tempo. Ninguém ouve o seu grito excepto o pobre coração do rapaz, que começa a bater desenfreadamente, aterrorizado com o que lhe acontecerá. Sente a mão da maldita rasgar a pele e a procurá-lo, os dedos ávidos por si.
Quando por fim o grito acaba, a rapariga tem o coração do rapaz nas mãos. O casal nunca irá desconfiar de nada; ele apenas nunca mais poderá amar, porque não o merece. Com um gesto cuidado, ela enterra o coração num pequeno buraco junto ao lago. Passados pouco segundos, uma tulipa nasce e cresce, assinalando o local onde aquele amor fora enterrado.
Num mundo distante, enquanto o sol se espreguiça no horizonte e beija os últimos traços de luz, uma criança nasce em graça. Os pais estão maravilhados, o pai não consegue conter dentro de si o amor e a ternura que sente pelo filho e pela esposa. A mãe vai à casa de banho e chora. Chora porque sabe que aquele bebé não é daquele pai, chora porque não sabe sequer quem é o pai, chora porque quer descobrir em quem se tornou e não encontra respostas.
A rapariga dirige-se calmamente à casa de banho. Não tem pressa, mas mesmo assim o cabelo esvoaça à sua passagem. Contempla o pai a segurar no filho e vai ao encontro da mãe. De novo o grito. De novo a busca frenética para agarrar aquele pedaço de vida, o sentimento tornado físico, o amor materializado em vida. Arrancou-o sem misericórdia e empurra-o em direção à parede de azulejos azuis. O coração desaparece, mas naquele azulejo para sempre vai ficar aquela pequena marca vermelha, imperceptível, com a forma daquele coração perdido.
Sente o apelo e vira-se na sua direção. O calor daquele final de tarde abraça-a de uma maneira sensual e carinhosa. O cabelo continua a esvoaçar, fustigado por ventos invisíveis. Observa o alvo, que se aproxima de uma mulher. Primeiro, desfocado pelo sol que lhe esconde a face. Depois, em plena virtude. O cabelo prateado que cai em cachos ao longo da cara desenhada por anjos, os olhos de um azul etéreo, a mesma leveza de andar, um ser como ela.
Ao vê-la, sente-se inundado por uma onda de ternura e enche-se de uma aura pálida de quem olha e reconhece o primeiro amor. Esquecem-se do que ambos estão ali a fazer, deixados ao acaso do destino. Levantam as mãos e tocam-se, apenas com as pontas dos dedos. O toque é seda, a sensação de luxúria, a contemplação maravilhada, o sentimento inocente mútuo. Foram trazidos à realidade da mesma maneira. Os corações palpitam pela primeira vez nas suas existências. Sentem o horror do pânico a latejar; sabem o que vai acontecer.
O chão treme naquela dimensão e com um grito de dor saído daquelas gargantas intocadas, sentem o coração ser arrancado e destruído. O sangue cai aos seus pés e ambos se desfazem em luz e em pó. Esse pó, dourado, assenta suavemente no chão. A terra continua a tremer, a chorar a perda dos temíveis. Onde o sangue cai, começa a desabrochar violentamente um tronco que cresce sem parar até se tornar num eucalipto imenso.
A aurora dá lugar à lua cheia. O eucalipto, apesar de maldito, está enraizado de amor e brilha com o rasto das duas estrelas cadentes que cruzam o céu da madrugada.
Escritora e Autora das obras, “Noite das Bruxas”, “Micaela”, “O Sonho de Ofelia” e “Sociedade do Horror Português”
Imagem Por, Caspar David Friedrich, “The Cemetery [Friedhofseingang]“
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