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Era a noite de passagem de ano. O meu neto, Tom, estava irrequieto junto à janela, a admirar o fogo de artificio com olhos de quem vê as coisas pela primeira vez – embora, para ele, isto não fosse novidade nenhuma. Todos os anos ficava comigo, enquanto os pais se iam divertir. Ao vê-lo assim, no auge dos seus sete anos, abri os lábios num sorriso e de certeza que as rugas se forçaram em redor dos meus olhos. Estou velha, e nem é o cabelo branco que me denuncia; é tudo o que já vivi. É olhar para esta criança e perceber o que me trouxe aqui, ano após ano.

– Avó, podes contar-me uma história? – estava a deitá-lo quando me fez este pedido. Era sempre difícil fazê-lo assentar num dia de rebuliço, por isso assenti com a cabeça e puxei a poltrona para mais perto da cama. Afinal, éramos só eu e ele, sozinhos nesta casa que tinha muito mais espaço do que aquele que uma velha viúva precisa.

– Hoje, vou contar-te uma história que nunca te contei. Estás pronto? Então aqui vai.

Era a primavera do ano de 1963 e a nossa protagonista, chamada Jane, tinha dezoito anos. Embora fosse uma época de liberalismo e Rock&Roll, os pais da Jane eram muito conservadores e faziam os possíveis para que ela tivesse a melhor educação possível. Não perceberam que, com isso, a estavam a tornar numa rapariga demasiado fria e mimada, sem a mais pequena noção de como funcionava verdadeiramente o mundo.

Viviam numa boa casa, em Londres, e, na rua em frente, havia uma fazenda. Todas as manhãs, a Jane arranjava um pretexto para sair de casa, de forma a poder observar Dave, um rapaz da sua idade que cultivava a terra. E, sempre que o fazia, dirigia-lhe um sorriso tímido.

Ele não era como ela. Não vinha de boas famílias, não tinha dinheiro, era uma sorte ter pão à mesa, para comer. E sonhava com uma vida melhor.

Certo dia, após mais um sorriso deslumbrante por parte da vizinha, Dave não se conseguiu conter e deu dois passos de corrida até ela, agarrando-lhe no braço.

Todos os dias fazes isso. Porquê? – Jane mirou-o. Se lhe dissesse a verdade, seria um escândalo. Não podia admitir que era, desde miúda, apaixonada por aqueles olhos verdes e cabelos negros. Que tinha deixado o seu coração ser roubado por um rapaz pobre e sem nada a oferecer.

Viviam em mundos demasiado diferentes.

Por isso, em vez de lhe responder, Jane voltou a sorrir e virou costas, seguindo caminho. No dia seguinte, Dave voltou a tentar, tal como no dia depois desse. Ao terceiro dia, mudou de estratégia; em vez de a agarrar pelo braço e de lhe fazer uma pergunta, Dave puxou-a para si e plantou-lhe um beijo nos lábios. Jane sentiu-se a voar, como se possuísse toda a magia do mundo dentro de si. E, a partir desse dia, começaram a encontrar-se às escondidas e foi impossível não se apaixonarem um pelo outro.

Sabes, Tom, o amor é uma coisa engraçada. Tem o poder de nos tornar invencíveis, se nos permitirmos senti-lo na sua totalidade.

Mas continuando… o inverno chegou e, com ele, a morte do pai de Dave. Ele ficou devastado. Agora estava completamente sozinho no mundo.

– Oh, isso não é verdade, avó – interrompeu-me o pequeno, fazendo-me rir. Ele sempre adorou as minhas histórias, mas nunca me deixa contar uma do início ao fim sem me interromper – Todos temos alguém.

– Claro que temos. Agora posso continuar, senhor sabichão?

– Desculpa, avó.

Não, Dave. Tens-me a mim – garantiu-lhe Jane.

Mas, por muito que ela quisesse acreditar nisso, não era verdade. Há muito que os seus pais tentavam arranjar-lhe casamento com um dos melhores partidos da cidade. Com o casamento viria um casarão, uma fortuna gigantesca… e ele era bom rapaz, simpático, educado, bonito. Porém, o coração dela não lhe pertencia.

Poucas semanas depois do pai de Dave ter partido, Jane soube que os pais tinham conseguido exatamente o que desejavam, e estava de casamento marcado. Completamente em pânico, a rapariga correu para o outro da rua, refugiando-se no estábulo, nos braços do amado.

Não te podes casar com ele. Não podes! – Dave estava fora de si, e Jane tinha a cara lavada em lágrimas. Afinal, fora para isso que nascera. Para ser uma boa rapariga. Para casar com um bom partido. Para fazer o que os pais esperavam de si.

O que mais posso fazer? Já está tudo tratado. Tenho de casar com ele.

Silêncio.

Passados poucos minutos, Dave deixou-se cair de joelhos no feno, onde ela estava sentada, e agarrou-lhe nas mãos. A diferença entre as mãos ásperas e calejadas dele, assentes nas dela, era gritante; mas ambos sentiam que estas mãos tinham nascido para se entrelaçarem.

Amanhã sai um barco do porto. Vai em direção aos Estados Unidos. Apanhamos esse barco e não olhamos para trás.

Fugir? Achas mesmo que essa é a melhor opção?

É a única opção. Eu amo-te, Jane. Por favor.

Jane assentiu com a cabeça. Ela também o amava. Disso sabia. Dave sorriu e beijou-a. Como jura do amor que sentia por ela, deu-lhe uma fotografia a preto e branco, que ela escondeu no medalhão de ouro que levava ao pescoço, em troca do gancho de cabelo com pérolas que ela lhe entregou. Ambos reaveriam os seus pertences no dia seguinte, quando estivessem felizes e finalmente juntos, longe da cidade que os viu crescer.

Nessa noite, Jane voltou para casa e começou a guardar tudo o que precisava de levar. Escolheu poucas coisas, algum dinheiro e joias que poderia vender. Se ele estivesse com ela, tudo correria bem.

E assim, quando a manhã chegou, escapuliu-se pela janela e correu até ao porto, onde viu os últimos passageiros a entrar no barco.

Jane! Jane! – Dave gritou o seu nome, acenando já de dentro do barco, e ela abriu os lábios no maior sorriso que alguma vez fizera. Ali estava ele. O seu amor verdadeiro.

Deu duas passadas fortes e determinadas, mas depois… parou. De súbito, apareceram-lhe na mente todas as coisas de que teria de abdicar se fosse com Dave. De comida no prato em todas as refeições, dos seus vestidos de alta costura, do amor e preocupação de dois pais que sempre quiseram o melhor para si, de uma vida desafogada. E ficou aterrorizada.

Jane nunca se esquecerá da expressão de Dave, quando percebeu que ela não iria com ele. De olhos molhados, a rapariga limitou-se a abanar a cabeça e a apertar o medalhão que levava ao pescoço.

– Ele foi sem ela? Esta história não presta, avó!

– Sim, meu querido. Ele foi sem ela. O barco começou a afastar-se e a Jane voltou para casa…

Semanas depois, chegou uma péssima notícia. O barco em que o Dave tinha seguido tivera um acidente e afundara-se no Atlântico. Ele não tinha sobrevivido. E a Jane chorou durante dias a perda do único homem que alguma vez tinha amado.

Meses passados, deu-se o casamento. Com o tempo, Jane aprendeu a amar também o marido com quem viveu por causa quarenta anos.

– Porque é que me contaste uma história tão triste, avó?

Abri os lábios num sorriso genuíno e desviei-lhe os cabelos da frente dos olhos, aconchegando-o depois melhor na cama.

– Porque, meu querido, estamos a começar um novo ano. E eu quero que entres nele com uma lição muito importante: nunca devemos desistir do amor, por termos medo. Nunca cometas os mesmos erros que a Jane cometeu.

O pequeno assentiu-me e ajeitou-se para dormir. Levantei-me da poltrona e dei-lhe um suave beijo na bochecha, desligando a luz da mesa de cabeceira. Parece que vai finalmente acalmar.

Dirigi-me à porta e ia encostá-la quando o voltei a ouvir:

– Mas avó… o teu nome é Jane.

– Sim, meu amor. Pois é. Agora vá, são horas de dormir.

Fechei a porta e comecei a descer as escadas, em direção à sala de estar, onde passava os meus dias a ler em frente à lareira. Sozinha. Vestia um vestido preto e brincos de diamantes. O meu cabelo, já branco, estava apanhado com alguns ganchos de forma elegante, à exceção de algumas madeixas. Nunca me faltou nenhuma riqueza na vida. Mas o resto…

Levei a mão ao peito e apertei o medalhão de ouro que lá trazia, com uma lágrima a criar-se nos olhos. Céus, tinha tantas saudades dele. Mas sei que um dia nos voltaremos a encontrar. E então, teremos uma eternidade para estarmos juntos.

As paredes enfeitadas a ouro, os móveis caros e os castiçais de diamantes… tinha uma casa recheada de coisas de valor inestimável, mas um coração completamente vazio.

Por: Andreia Ramos (Escritora e Autora do livro, “A Defensora do Oculto I e II”)

Imagem Por, Gustav Klimt, “The Kiss” (Belvedere)

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