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Entro nos dias da chuva com a mesma vontade com que acordo a alma para a infinitude das horas. Penteio os cabelos dos filhos, corro pela casa desenhando passos de tempo e memórias de cheiros que se atravessam pela pele. Desenho rostos sobre as janelas de quem passa pela rua. Cumprimento os homens que semeiam a vida nos campos entre os salmos dos pássaros e o germinar dos olhos. Ouço pessoas a cantar com os pés no caminho. Outros a rastejar os olhos pelos copos na taberna e os mais velhos, os sábios, a preparar a orfandade do futuro. Há homens que preparam a morte com os sorrisos pregados no rosto. Há quem escute o silêncio do homem velho. As mãos colocadas em concha sobre as pernas, uma toalha de renda e dois pingos de chuva sobre os olhos. Há quem dance biogeográficamente pelas ruas da aldeia, dançando pelas vielas onde a chuva cai dos telhado como voos de pássaros que caem a pico vindos lá do céu, atravessando as folhas das árvores. Relemos os livros antigos, as cartas vindas de outras cidades, de aventuras exploradas noutros continentes. Suspiramos, devoramos a fome do corpo, da nossa história. Vemos a chuva a cair. Lavando as ruas e a alma. E não precisamos de mais de medir o tempo, tomem as minhas mãos sobre o vosso colo e a minha voz que treme e respira pelos teus olhos, pela vossa voz abrindo a casa das infâncias onde Deus entra depois do homem e a mulher chega sempre em primeiro ao lugar do amanhã.

Acorda. Chegou a hora.
A procissão já cantou o novo domingo…
As ruas já foram atapetadas com olhos florais
E bocas cheias de salmos e boas novas.
Acorda, coloca os pés dançarinos sobre o chão ateu e apregoa novas crenças,
Novo campo de sementeira e novas desfolhadas nos princípios das noites.
Enche o copo de vinho de poesia.
Enche o corpo de afetos e de encontros.
Enche as mãos de carícias e os olhos glaciares de um fogo comum,
Divino, líquido.
Abre a boca e grita os ecos que te agrilhoam a voz.
Canta até te doer a voz.
Saliva o poema.
Saliva o beijo.
Saliva a pele.
Saliva a semente.
Do outro lado do poema há uma outra morada que espera a tua verdade.
Canta a fome.
Canta o cântico do homem.
Fala a linguagem da mulher,
A linguagem do homem que se prostitui.
Fala a língua da bomba.
Fala a língua.
E quando dois poemas se beijam que flores anunciam?
Que muros derrubam?
Que morte aclamam?
Que sexo comungam nas esquinas da noite?
Se chegarmos ao futuro que memória teremos como raízes profundas?
Há um espasmo de olhar sobre cada rosto.
Desenhar o fogo dentro da palavra.
Desenhar pássaro dentro da mão.
Desenhar o fruto dentro do sumo.
Acorda.
A música abre o dia que acorda.
Os pássaros já la estão dentro da janela…
E agora, o que será da humanidade?
O que será de nós dentro deste rio que desagua dentro do horizonte.

Das janelas da minha aldeia, vejo as histórias dos homens, o cantar das mulheres, o brincar das crianças. O sonho infantil de quem aqui já não mora. Dos que partem, dos que morrem, das floreiras junto dos vidros e das cortinas rendadas na brancura das casas. Escuto o bater do vento que dança e de quem dança ainda do lado de dentro. Fotografias abandonadas nas madeiras dos quartos onde tantas vezes choraram, tantas vezes cantaram tantas vezes sonharam. Vejo cadeiras cansadas de passados que se erguem sobre o presente. Quem ali viveu? Que nomes carregam as paredes das casas. Há um rasto de poeira sobre o caminho da nossa história. Piso caminhos construídos por outras gentes. Bebo a água de onde outras gentes sacaram sede e outros animais esculpiram os rios. Chego devagar às janelas da minha aldeia. Ouço o correr das roldanas de quem estende a roupa ao sol. Digo bom dia. Digo boa noite. Devagar acolho as histórias. Como um ventre de outras tradições. Tudo aconteceu noutro lugar da história. A mulher prepara o cheiro familiar da fome. Amigalha a noite na maciez do pão. Conta outras histórias. Os fontanários que já seguram as bocas. O pão está no centro da mesa e os cheiros da cozinha inundam a casa. A pedra da casa tem as formas das mãos. Ainda sinto o bater do martelo na pedra. E no tempo que passa.

Somos de todo este chão, da palavra que se comunga como a fome e como a sede e como o amor. Corremos no princípio do verso verbo de todo o ser e do todo o sentir. Somos a mão que toca, que acaricia, que rega e planta a semente. Somos o chão que nos sonha o futuro. O pulmão arfante do beijo. Chegam silenciosas as horas das madrugadas com os uivos dos gatos nos telhados das casas de pedra onde a luz da lua rompe pelas frinchas das janelas. E ali estás tu, ali estamos nós. Presentes de toda a memória onde a pele sabe a fermento de afeto e amor. Um dia escreveremos cartas de amor para outras cidades com as moradas de outros lugares. Mas ali ficam as nossas memórias deixadas sobre as pedras nos meios dos montes onde caminhamos alegremente dentro das manhãs, cantando e dançando toda a poeira que se ergue a cada passo para a eternidade. Devagar dizemos os nossos nomes saboreando os lábios com a pronúncia do beijo e da fome dos lábios.

Escrevo as últimas linguagens que nos sobram.
A da luz, a da noite, a da sombra, a dos corpos que dançam.
Ofereço às linguagens do humano os sons dos animais.
A da voz o uivo dos lobos.
A das mãos as asas dos pássaros, a dos pés o rastejar das serpentes.
Ouço o passear dos teus gestos dentro das palavras imóveis.
As que caem dentro do poema com o cheiro da pele e o sabor do beijo.
Calam-se as vozes e a pronúncia do beijo primário de todas as cores.
Toco a mão.
Toco a casa.
Toco a pele.
Toco a morada.
Os dedos balançam nos ponteiros do relógio.
O tempo que passa.
O tempo que passa.
O tempo que passa.
O tempo que devagar chega dentro do futuro.
O primeiro adeus. A primeira lágrima dentro da saudade.
O que nos amigalha dentro da casa a que chamamos memória.
Olho-te com o deslumbre de criança nas infâncias diante das flores.
Olho azul de céu. Mar amar maresia de calmaria.
E ali ficar, cantarolando cantigas de outras tradições,
Caminhando outras infâncias, sorrindo,
Vendo-te passar diante de uma natureza tão humana, tão pássaro, tão árvore.
Regressam os braços dentro dos braços, sangue a sangue
Luz sobre a sombra dançando loucamente
Numa despedida em que as mãos são semente e terra.

Deixem-me viver a velhice… saborear os velhos beijos das infâncias e o sangue que ainda me desagua na língua. Saborear a palavra e a respiração que ainda se ergue como raiz dentro do corpo. Há de chegar a hora da minha morte, em que fecho os olhos e canto o poema final, as árvores ainda dão pássaros e os pássaros ainda dão frutos, e os ponteiros do relógio atravessam os dedos de quem acerta a hora dentro da noite. A solidão espera nos na sombra onde a luz da lua cheia dá vida e cânticos aos gatos que sobrevivem nos telhados das casas. As árvores habitam demoradamente nas mesmas moradas. Os nossos nomes, as nossas idades, sobrevivem no grande espaço da eternidade. Sobrevoando os olhos, no grande verde da natureza, ouvimos os animais selvagens a caminhar no grande espaço da terra inundada pelo calor do sol. Os olhos perdem-se na imensidão do horizonte. Azul-celeste pintado de pequenas nuvens cinza e de um verde arvoredo de esperanças e de um amarelo e branco malmequer de loucura e esperança. Há cheiros que nos invadem as danças do corpo como flor natural. Cheiramos as madressilvas, os dentes de-leão e flores púrpura e as fezes de animais que caminham pelas ruas. Há fontes de sonhos de onde bebemos a paz e a tranquilidade dos dias. Longas horas tecedeiras de buscar o passado em todo o futuro. E esperar o teu beijo como quem espera o ar e a água e lavar o corpo entre as danças das chuvas de inverno e sossegar o peito com as duas mãos vestidas de um novo amanhecer. Deixem-me saborear a morte com o fruto diospirado nas mãos amadurecidas da vida

Sou feito de tradições, de gerações umbilicais. O cheiro das comidas do domingo que se erguem pelas chaminés das casas em redor das nuvens lúcidas que escondem o manto azul do céu. Admiro os cães e os latidos e as azafamas das colchas alvas às janelas líquidas dos homens e mulheres que vestem os seus olhos transparentes de alma e osso e pele. Cabem nas palmas das mãos as histórias que nos chegam de outros passados. Os homens que emigram, as mulheres que contam as histórias em cartas feitas de lágrimas e saudades tricotadas nos tempos solitários onde dói mais a saudade do que os ponteiros do relógio que batem nas paredes das casas, amareladas com o tempo. Tapeteamos o chão da aldeia. Verdes, vermelhos, amarelos, esperanças, orações filarmónicas gargalhadas de lembranças de outros tempos. Admiramos a beleza de todo o ontem. A dor das palavras que percorrem a fome de outras bocas. As casas estão abertas. Os sinos trinam anunciando os louvores e os evangelhos e os pés que percorrem a aldeia. As casas estão abertas. Os animais pastam sossegados a erva fresca das manhãs que se levantam com o cantar dos galos. As casas estão abertas. Encontros de tanta gente sobre as casas sem portas, um ventre e um coração aberto para o mundo.

Vitor Hugo Moreira

Escritor

Imagem Por, Édouard Manet, “Chez Tortoni

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