Pousa o bloco de notas com algo escrito em cima da mesa da esplanada, para acender o cigarro. O fumo paira no ar, – esfrega a palma da mão na cara mais uma vez, como se algo a incomodasse. Afasta os fios de cabelo bagunçados e volta a levar o cigarro à boca, expelindo, mais uma vez, o seu fumo. Bebe um trago da segunda bebida que pede e respira fundo – o peito abre-se e fecha em largos compassos.
Ninguém sabe o que pensa, ninguém sabe pelo que passou, mas todos lhe vêm o rosto nitidamente intrigado. O olhar cansado, com olheiras percetíveis. Os lábios caídos numa tristeza agoniante.
Bebe todo o conteúdo do copo e levanta o braço para pedir outro. O empregado sorri-lhe suavemente e anui.
As cinzas do tabaco caem-lhe em cima da vestimenta vermelha e enrugada. Não se preocupa em limpá-la, porque está tão focada a ler o misterioso bloco que não sente o palito seguro pelos dois dedos da mão apagar-se.
Trazem-lhe mais uma bebida, mas esta vem mais abundante. Levam o copo vazio e assim que o empregado volta a atender outro cliente, levanta-se de rompante.
Passa por mim com um andar nocivo. É como se tudo que dentro dela vagueja se entrasse em mim num só momento – mesmo sem precisar dirigir-me uma única palavra.
Atira o cigarro para o chão e entra no café. Empoleira-se ao balcão e estende uma nota à mulher que, do lado de lá, diz-lhe o preço da conta.
Caminha a passos largos e, em dois grandes goles, bebe a última bebida. Agarra no maldito bloco de notas e desta vez encara-me.
As pupilas estão minúsculas, os olhos esverdeados brilham, num tom desesperador. Os lábios erguem-se rapidamente, sorri-me:
— Um bom dia. — volta-se e entra na calçada, avançando pela passadeira sem visionar a estrada.
E basta um carro passar que já a perdera de vista.
Imagem Por, Otto Dix, “Portrait of the Journalist Sylvia von Harden [Bildnis der Journalistin Sylvia von Harden]”
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