A chuva batia forte contra ao vidro quando o som do despertador invadiu violentamente o quarto. Num movimento único, ela voltou-se na cama e desligou-o, resmungando. Sentia-se derrotada. Mais um ano tinha passado e parecia continuar no ponto de partida.
Solteira. Sozinha. Desesperada.
Apesar da sua tenra idade, apenas vinte e poucos anos, beleza não lhe faltava. Os cabelos compridos e as pernas esguias costumavam bastar para captar a atenção de qualquer homem. No entanto, dias, semanas e meses passavam e, no Dia de São Valentim, as memórias acerca das suas relações passadas – fracassadas – assolavam-na.
Vou ser sempre só eu e o cão, dava por si a pensar, à medida que ouvia o seu pastor alemão, o Lucas, a aproximar-se do seu quarto.
Apaixonada desde sempre, mais uma vez via-se sem ninguém que lhe comprasse chocolates em forma de coração ou um belo ramo de rosas vermelhas. Não que precisasse. Ela podia bem comprar-se tudo o que entendesse.
Mas seria bom ser cuidada, ser amada.
― Isto é ridículo – resmungou, depois de tirar a cabeça de debaixo dos cobertores. Afinal, porque haveria de se sentir tão mal neste dia, quando durante todo o ano também continuava sozinha? Não devia um dia ser apenas um dia?
Após um suspiro comprido, arranjou coragem e levantou-se da cama. De banho tomado e barriga cheia, encaminhou-se para o escritório. Sabia que pelo menos nesse campo não se podia queixar. Estava bem mais evoluída na carreira do que alguns colegas seus. Sempre soube aproveitar as oportunidades e era boa profissional, ganhava mais do que o suficiente que precisava e isso dava-lhe ainda mais motivos para ser uma mulher segura de si.
Então porque é que nenhum homem me dá o devido valor?
Quando a hora de almoço chegou, sentou-se com as colegas e ouviu-as falar sobre as surpresas que receberam de manhã. Chocolates, flores, a típica lingerie mais ousada, que fica na gaveta guardada apenas para ocasiões especiais porque não é nada confortável.
― Estes são de uma chocolataria nova que abriu perto da marginal. Chama-se Paixão Prometida. Têm mesmo de experimentar! – a Gertrudes, uma quarentona com tudo no sítio mas com nome de avó, empurrou a caixa em forma de coração para as colegas – O meu marido deu-me, mas se comer isto tudo sozinha fico um pote.
Com um sorriso amarelo, ela lá aceitou provar um. Na verdade, duvidava receber mais algum bombom neste dia, por isso, porque não aproveitar?
O sol já se punha quando chegou a casa. Trocou a sua camisa azul, saia justa e saltos altos por um fato de treino bem quente e chamou o Lucas para que fossem à rua. Sempre pronto, o cão seguiu à frente da dona a abanar o rabo à medida que descia as escadas do prédio.
Odeio o Dia dos Namorados, pensou para si, à medida que caminhava pelo areal, vendo ao longe alguns casais enamorados na areia.
― Bem, se vou ver casalinhos em todo o lado, mais vale fazê-lo de melhor humor – e “melhor humor”, para ela, era código de comida.
Sem pensar muito, seguiu caminho até à nova chocolataria da qual a colega lhe tinha falado, junto à praia. Tinha três pessoas na rua à espera. Ao espreitar lá para dentro, conseguiu ver que era decorada em tons de vermelho, branco e castanho claro, e os mais belos bombons expostos na montra colocaram-na a salivar. No vidro, em letras garrafais, existia uma promessa: “Quem entrar nesta loja, dela não sairá sem encontrar a sua Paixão Prometida”.
― Fica aqui, volto já – ao comando da dona, o Lucas sentou-se nas pedras do passeio e ela prendeu-o a uma das barras por debaixo da montra.
Depois de escolher uma caixa grande de chocolates com vários recheios, saiu e permaneceu quieta, de olhos arregalados, a sentir o pânico chegar a cada fibra do seu ser.
― Lucas?
Com o coração aos pulos, olhou para um lado e para o outro, não vendo o seu pastor alemão em lado nenhum.
― Lucas??
Em passadas largas, começou a afastar-se da chocolataria e, ao fazer a curva, lá estava ele. Que nem um oferecido, o Lucas abanava o rabo enquanto recebia festas de um estranho alto, de calças de ganga e de trela na mão, com uma bonita caniche.
― Lucas! – ralhou, alto o suficiente para o cão se voltar para ela e ladrar, anunciando a sua presença. O estranho endireitou-se e, conforme ela se aproximava, observou-a com os seus grandes olhos azuis.
― Conheço-a? – face à pergunta, ela franziu os olhos.
― A mim? Penso que não. Mas esse é o meu cão – porque é que me haveria de conhecer?
O homem fez um ar de confusão.
― Mas acabou de chamar “Lucas”…
― Sim, o meu cão – finalmente junto a eles, ela baixou-se e colocou-se ao nível do focinho do cão, semicerrando-lhe os olhos. Quando chegarmos a casa vamos ter uma conversinha, tentou transmitir-lhe. Depois, pegou na coleira e inclinou-a para que o estranho pudesse ver – Está a ver? É o Lucas.
Dos lábios do estranho, um sorriso surgiu.
― Oh. Peço desculpa. É que o meu nome é Lucas. O seu cão veio ter comigo, nem sei de onde. Provavelmente soltou-se.
― Oh.
Sem saber o que mais fazer, ela sorriu envergonhada. Não é todos os dias que se conhece um homem com o nome do nosso cão, muito menos um que seja assim bonito, como ele.
― Bem, nós vamos andando. Foi um prazer conhecê-lo, Lucas.
Mas o Lucas de quatro patas tinha outros planos. Depois do primeiro puxão, não se mexeu. Depois do segundo, começou a andar à volta da dona e do desconhecido, apertando-os cada vez mais, deixando-os tão juntos que nem o frio de fevereiro os atingia. Que nem um verdadeiro c(ão)samenteiro.
De faces rosadas, ela deixou-me cair no olhar dele e por um momento o seu coração parou.
― Peço desculpa – disse o Lucas de duas pernas, com um sorriso bonito na face.
― Ora essa. O cão é meu – acabou pela por se desculpar, encavacada.
Este malvado cão.
― Bem, eles parecem dar-se bem.
Só quando o ouviu dizer isto, é que ela olhou para o lado e viu que o seu cão estava bastante próximo da caniche, o que a fez rir. Quando voltou a olhar para a cara do homem, encontrou uma expressão pensativa e um toque de nervosismo. Mas então a voz dele voltou a soar, grave e segura:
― Sei que isto pode parecer súbito, mas tem planos para jantar?
Ela engoliu em seco. Planos para jantar? No Dia dos Namorados? Era um pouco deprimente dizer que não mas, se o fizesse, se aceitasse esse facto, talvez uma nova aventura a aguardasse.
Ainda com o calor do corpo dele a atingir o dela, abanou a cabeça.
― Sou uma solitária no Dia dos Namorados.
― Perfeito! Somos dois. Por isso, temos de ir jantar. Pelos cães.
A sua última frase fê-la rir, e só aí percebeu que nenhum dos dois tinha feito algum movimento para se tentar livrar da trela que os juntava.
― Claro, pelos cães.
― Como é que se chama, mesmo?
Envergonhada, ela sorriu e levou a mão ao cabelo, desviando-o dos olhos.
Oh, a ironia.
― Valentina. Chamo-me Valentina.
E, apenas assim, Valentina encontrou a sua Paixão Prometida, graças a uma boa dose de bombons e a um cão que se rendeu às festas do estranho que passaria, depois desse dia, a dar-lhe as melhores guloseimas e a relembrá-lo constantemente do quão bom menino ele era.
Autora dos livros “Amor na Porta da Frente“, “Até Onde As Ondas Nos Levarem” e “A Defensora do Oculto“. Escritora do texto “Mundos Diferentes“.
Imagem Por, Theresa Artigas, “A Couple walk with their Dogs”
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