Tirei mais uma batata frita e molhei-a no creme de maionese, alho e oregãos, antes de a levar à boca. Agarrei o copo de papel com a outra mão, sem tampa ou palhinha, tentando assim não desperdiçar tanto plástico.
O sabor borbulhante do sumo saciou a minha sede, ao mesmo tempo que sabia, apesar de adorar esta bebida, que não continha sequer um porcento de laranja natural.
Se a minha avó estivesse aqui, ela não comeria nada, porque diz que estes restaurantes são de “comida de plástico”. No entanto, sabem o mais parvo? Estava a adorar comer aquilo, que paguei com o meu próprio dinheiro, e ignorei todos os problemas relacionados com a sua ingestão, com a coisa mais fútil de sempre: «Nunca estive tão magra, por isso, não me fará mal comer isto. Talvez até irei ao balcão pedir umas asas de frango adicionais. Estou cheia de fome!»
Abstraía-me nos meus pensamentos, para tentar ultrapassar o desconforto deste encontro, marcado e confirmado à pressa, hoje de manhã.
Estava solteira há cinco anos e adorava a minha liberdade. Aproveitava os meus tempos livres para deixar fluir a minha criatividade, ver filmes e sair com os amigos. No entanto, parte de mim sentia falta de afecto, carinho e outro tipo de companhia.
Foi numa brincadeira com as minhas amigas que entrei no mundo das aplicações de encontros amorosos que, depois de umas semanas avaliando as reacções e tópicos iniciais de conversa, constactei o que, agora, é já bastante óbvio. A maior parte das pessoas que entra nessas aplicações, só quer algo casual e fugaz. Não há nada de errado nisso, visto que a grande maioria confirmava as suas expectativas com os encontros naturalmente e sem grandes “jogos” e não vou negar que, algumas das vezes, alinhei nisso.
Só que o Carlos surpreendeu-me… e ainda não sei se positiva ou negativamente.
Lá estávamos nós. Numa hamburgueria de cadeia fast-food perto da praia, à noite*, no dia catorze de Fevereiro.* O dia dos namorados.
Tínhamos começado a falar há, somente, uma semana, e a conversa parecia estar a correr bem. Já sabíamos o básico e estávamos a entrar naquela fase onde muitas pessoas estagnariam na conversa e passaria ao:
«Ok, não vou mentir, achei-te muito gira, pelas tuas fotos de perfil e isto é o que eu quero obter da conversa».
No entanto, neste caso, a troca de mensagens com Carlos nunca perdeu o interesse. Encontrámos pontos em comum: ele também lê livros todos os dias e pratica surf…
– Então, como correu hoje o trabalho? – pergunta-me, com um sorriso encantador. – Sempre conseguiste concluir a leitura do livro durante a hora de almoço, ou o teu colega pediu-te ajuda para perceber os clientes estrangeiros, de novo?
Corei. Fez uma pergunta normal, para quem tem falado todos os dias contigo, desde que ele meteu conversa contigo, há sete dias atrás. Todavia, senti-me ligeiramente incomodada com o nível de conforto entre nós.
Suspirei:
– Faltam-me dez páginas para terminar.
Voltou a sorrir, deixando um pequeno brilho aparecer nos seus olhos, cor de amêndoa, que tanto me cativaram, quando vi as primeiras fotografias no seu perfil da aplicação. Passou a mão pela cabeça rapada e chegou-se para a frente, entusiasmado:
– Eu estou numa parte bastante épica no que estou a ler. Trouxeste o teu contigo? – Claro que sim. Ando sempre com o livro atrás.
Notei, logo ali, que o Carlos era de sorrisos fáceis.
– Eu também! Então, queres terminar o teu agora? Assim, posso também ler esta parte, que me está a deixar tão curioso!
A minha cara estava cada vez mais quente e tinha a certeza que não era por causa do aquecimento central do restaurante.
– Agora?
– Sim.
– Mas ainda nem tocámos nos hamburgueres.
– Comemo-los depois. Dez páginas não são nada. Não vai demorar assim tanto tempo.
Engoli em seco e tirei o livro da mala. Ele fez o mesmo.
Abriu o livro com uma mão e, com a outra, agarrou o copo de sumo, prendendo a palhinha entre os dentes.
Dei por mim a pensar que o seu casaco felpudo castanho devia ser bastante quente e macio ao toque e no quão bem combinava com a sua pele, bronzeada pelo sol, até mesmo em pleno Inverno. Deixava também escondido a sua complexão atlética e forte, embora tudo nele, naquele instante, gritasse “abraça-me e perder-te-ás em mim, até morrermos de velhos”.
Senti um arrepio e reparo que ele me apanhou a olhar para ele por cima do livro. Aqueles seus olhos amendoados, falando de atracção e timidez fizeram-me entender que talvez isto não fosse “mais um jogo”.
– Já acabaste?
Comprimo os lábios, ainda escondida por trás do livro, ainda com o marcador preso por entre as páginas abertas.
– Não. – hesitei.
– Então? Podes acabar. Vou querer saber se gostaste do final, ou não. – Porquê? – a pergunta saiu-me de rajada.
O que queria mesmo perguntar era:
«Por que razão me convidaste para o nosso primeiro encontro neste dia? Podes parar com os jogos e dizer-me o que queres de mim, de uma vez?»
Não tive coragem para o verbalizar. Tinha medo da resposta.
– Ora! – pousou o copo e o livro e agarrou no seu hamburguer de frango panado com bacon e cebola. – Estou interessado em lê-o também, mas quero uma opinião honesta, primeiro, para saber se vale a pena.
Ajeitei os óculos na cara, enquanto ele dava a primeira dentada.
A minha cabeça começou a pensar, a mil à hora:
E se ele quer mesmo algo mais do que um encontro casual? E se o que ele quer é ter uma conexão intelectual com alguém e ir saindo com a pessoa, para ver se a conexão evolui para um romance?
Procurará ele… uma relação?
Essa ideia assustou-me muito mais do que eu estaria à espera, visto que eu entrei, primeiramente, nas aplicações de encontros com esse propósito… Só que algo se perdeu (ou ganhou) com as experiências que tive na mesma, entrentanto.
Fosse o receio de ele estar a jogar um jogo muito mais complexo e acabar por partir o meu coração, fosse pelo facto de achar que ele era “areia a mais para a minha camioneta”, toda aquela situação deixou-me dividida:
Será que o beijo agora, e espero pela sua reacção, para ver se é só algo carnal que procura, ou não…? Ou estou mais aterrorizada com a hipótese de ele pensar, sequer, em poder vir a envolver-se romanticamente comigo?
Decidi enfiar essas perguntas, num canto bem escuro e escondido da minha cabeça.
– Desculpa, Carlos… – corei e baixei o olhar para o meu livro, que fechei violentamente, pousando-o na mesa. – … Isto não vai dar para mim.
– O… O quê? – gaguejou, desconcertado.
Não consegui fitá-lo. Não levantei o meu olhar para o dele, uma única vez, com receio de voltar atrás e beijá-lo mesmo, como me tinha ocorrido há segundos fazer.
Fiquei assustada.
Agarrei na caixa de cartão, onde estava o hamburguer, e no copo do refrigerante, deixando as batatas e o Carlos para trás.
Nestes poucos minutos com ele, em pessoa, percebi que todas as mensagens trocadas entre nós tinham sido reais e não um jogo. Ele era genuíno e autêntico e, muito provavelmente, um querido, como sempre me mostrou ser.
Não era isso que eu queria? Pois… Mas, às vezes, as pessoas têm medo de agarrar o que querem, com medo de não o merecer.
Nunca mais vi o Carlos. Desinstalei as aplicações, para que não morresse de vergonha, ao encontrá-lo numa delas, de novo. Andei anos, perdida em relações tóxicas e separações difíceis. Aprendi, não só a aceitar quem sou e o que realmente quero. Lutei pelos meus sonhos e fui atrás das melhores ondas, tentando participar nas competições de surf, sempre que possível… Mas, melhor que tudo isso, aprendi a amar-me, primeiro que quaquer outra pessoa no mundo.
Agora, aqui estou, naquela mesma praia, quase três anos depois.
Estamos no mês de Novembro e o vento e frio são arrepiantes. Consigo ver a cadeia de fast-food, no cimo da duna. Preparo-me para a minha vez, no torneio de surf desta zona… quando o vejo.
Está sentado na areia, com o fato vestido e a prancha a seu lado… e um livro na mão. A capa chama-me a atenção*. Pensei que o tinha perdido.* Andei semanas a tentar lembrar-me onde poderia ter deixado o livro, acabando por desistir da sua procura.
Deixei-o na mesa, naquele dia, com a pressa que tinha em sair dali.
Ele olha para mim, rodando ligeiramente o seu corpo na minha direcção. Oh, não! Ele apanhou-me a olhar para ele, de novo.
Estou para morrer de vergonha, quando vejo-o sorrir. Os seus olhos, quase dourados com a luz do sol, brilham de alegria.
Levanta um braço e chama-me para perto dele.
Desta vez, vou. Sem medos.
Por: Ana Cláudia Dâmaso (Escritora e Autora de inúmeras obras, sendo algumas: “Koldbrann” e “Treze Más Histórias para Adormecer”)
Imagem Por, John Singer Sargent, “The Fountain, Villa Torlonia, Frascati, Italy” (Art Institute of Chicago)
Também Gostarás:
- O Dia tanto Espera Já passava da meia-noite, noite fria para um pouco sombrio. Eu estava esperando sua chegada, parecia ridículo...
- Momento de Paixão e Paraíso As tuas mãos seguravam-me com mais força, os dedos a marcar a minha pele enquanto me conduzias para o paraíso...
- Areia Movediça Precisas escavar a areia todos os dias, precisas certificar-te de que ela não cairá. Caso contrário, serás engolida...
- A Menina Cheia de Ideias Era uma vez, uma menina muito pequenina, que tinha ideias muito grandes. As ideias dela eram tão grandes, que já...
Mais
A Linha da Solidão
Era uma publicidade da SOSolidão. Não tinha nada a perder, ele que, afinal, já tinha perdido tudo. Ajeitou-se no sofá, suspirou e ligou.
Ontem Enterrei o Meu Melhor Amigo
Ontem enterrei o meu melhor amigo. Choveu muito, mas nem a chuva afastou aqueles que se quiseram despedir dele.
Decadência
A tua decadência faz-te, a partir de um certo milésimo de segundo, não te querer livrar dela nunca mais – esse, é o pico mais grave.
É Natal… !?!
As barraquinhas de Natal agora assustam-me e à medida que as luzes vão se erguendo pelas cidades o meu coração bate mais rápido.
Melodia do Nosso Adeus
Quanto mais ando menos saio do sítio, quanto mais te esqueço mais te quero. Quanto mais tempo passa, mais penso em ti.
O Artesão de Poemas
O meu avô Alberto era artesão e poeta. Tinha sonhos nas mãos, mas não sabia escrever. Retirava da vida a inspiração.