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A saúde mental sempre foi uma área da saúde pouco valorizada, em termos de orçamento do Ministério da Saúde.

Os discursos ao longo dos últimos anos e mesmo nas últimas décadas, foi de investir mais na saúde mental. Se pensarmos que o bem estar psico-emocional pode comprometer outras áreas da saúde, compreendemos como na verdade a saúde passa a ser fragmentada, dividida. Não tendo uma filosofia de saúde global, integrada, pois tal como as especialidades médicas, tudo é reduzido a sub-saberes, que deixam de ler e diagnosticar o ser humano numa perspectiva de história pessoal, comportamental, afectivo-emocional e somática global.

Mas mesmo a parte somática é reduzida a uma visão mecânica, funcional, bioquímica, fisiológica, endócrina, com as neurociências que produziram uma ideologia, não um saber clínico, relacional, profundamente humano, simbólico. O ser humano é reduzido a uma interação neuronal, neuroquímica e neurofisiológica. Ideologia porque se acredita erradamente que somos um produto das distorções genéticas e neurofisiológicas, neuroquímicas e onde a epigenética, a história interior e comportamental do paciente passam a ser relegados.

Na saúde mental impera um decalque da neurologia na psiquiatria, onde a linguagem, a escuta da realidade interior do paciente, o simbolismo, a subjectividade e mesmo intersubjectividade das emoções, criam mal estar, angústia, ansiedade, depressão, descompensações várias, mas passam a ser subvalorizadas nas intervenções estatais/públicas e mesmo em muitos domínios de intervenção privada. Impera a psicofarmacologia, o excesso de psicofármacos, que anulam e controlam ainda mais as emoções, que deveriam ser expressas, digeridas, metabolizadas. Se tentarmos ver esta situação numa perspectiva corporal ou psicossomática, o corpo não é observado numa perspectiva emocional, que apresenta as memórias da história pessoal do paciente, ou mesmo o significado simbólico da sintomatologia e do adoecer corporal. Observa-se apenas numa perspectiva puramente médica, onde a tecnologia actual vê cada vez mais no micro, no celular, no bioquímico, mas cada vez menos no relacional, no subjectivo, na escuta atenta da dor interior do paciente, ou até mesmo na intersubjetividade. Olhamos demais para o micro e perdemos a globalidade humana relacional.

Poderíamos aprender com as consequências da actual pandemia Covid, onde os confinamentos originaram crises de ansiedade, depressões, sindromes de pânico e dificuldades conjugais, relacionais e socio-emocionais.

A saúde mental passou a ser cada vez mais uma forma de produzir classificações nosográficas, ou de acrescentar mais psicopatologias, com subdivisões, com a possibilidade de haver sempre uma intervenção psicofarmacológica. Veja-se por exemplo a evolução dos DSM’s nos EUA, que criam uma espécie de “Bíblia” dos diagnósticos em saúde mental, que são periodicamente actualizados e aumentados! Como soube muito bem afirmar o psiquiatra Allen Frances, que esteve na organização do DSM IV e que teceu duras críticas ao interesse das empresas farmacêuticas, na interferência com novas patologias, que nem todas foram acrescentadas. Para Frances os DSM’s transformam os problemas quotidianos humanos em problemas mentais e/ou psicopatológicos.

Assim sendo, as psicoterapias e todo o apoio/acompanhamento psicológico são remetidos para a intervenção privada, dado que os serviços públicos, se debatem muitas vezes com uma lista de espera, com um tempo considerável para uma primeira consulta.

Alguns hospitais psiquiátricos apresentam intervenções psicológicas ou psicoterapêuticas, mas em que os psicólogos, ou psiquiatras, ambos com formação psicoterapêutica, não tem tempo que é necessário, ou disponibilidade para uma intervenção “totalizante”. tal como, as intervenções no sector privado.

Podemos assim referir que a saúde mental, tem um efeito financeiro que os estados/governos, por vezes não querem assumir na totalidade, ou mesmo, em países como os EUA, onde as seguradoras apoiam as intervenções psicoterapêuticas, muitas vezes exigem intervenções com um número fixo ou limitado de sessões, ou com “simpatia” por modelos focados em intervenções rápidas, porque centrados nos sintomas em questão, como o modelo cognitivo-comportamental, quase idêntico ao modelo médico.

O CID – Classificação Internacional de Doenças, na sua letra F, apresenta uma delimitação e diferenciação das patologias mentais, psico-emocionais e comportamentais.

Estamos bem longe da perspectiva da brilhante psicóloga e psicanalista Joyce McDougall. que escreveu uma obra fabulosa: “Em defesa duma certa anormalidade”, pois será esta “anormalidade” que cria realidade interior psicológica, pautada de angústias, conflitos internos, contradições, paradoxos, que fazem parte da estruturação psicológica individual, familiar. Será esta uma forma de ler o humano, em oposição à “normopatia”, uma obsessão pela normalidade, que cria uma espécie de performance comportamental, que nos distancia da nossa história interior, individual, psicológica, mas muito mais conformista, adaptativa, hiperadaptativa. Diria eu, que seria uma espécie de integração social, sem individualidade psicológica, quase “mecanizado”, quase “despsicologizado”.

Ainda na mesma linha Arno Gruen, outro psicólogo e psicoterapeuta da escola psicanalítica, escreveu uma obra que nos põe a pensar sobre a realidade humana e a sua saúde mental: “A loucura da normalidade”. Gruen não tem dúvida de que o conformismo e a submissão ao outro (social, familiar) não favorece autonomia, individualidade e saúde mental. Demonstrou muito bem esta ligação na sua obra: “A traição do Eu”.

O problema não são os pacientes que estão nos consultórios dos “psis”, pois esses tem consciência do seu mal estar e das suas dificuldades / limitações psico-emocionais. O problema está nos que pensam e acreditam estar bem, na sua “auto-estima” hipervalorizada, ou melhor, no seu narcisismo, sem noção do outro. Na felicidade que expõe nas redes sociais, sendo uma mentira, ou falsidade, em que tantas vezes este exibicionismo público, esconde um mal estar, uma falta, um vazio interior.

Então que critérios podemos usar de forma válida para definir o que é a saúde mental?

São apenas as psicopatologias, ou as normalidades/normopáticas que escondem uma dor interior, um vazio psico-emocional, a falta de autonomia e conformismo psicológico?

Dentro da dita “normalidade” podem existir dores internas. que se recusam ou denegam, uma espécie de micro-patologias obscuras.

O humano é frágil, incompleto, imperfeito, criativo e insano, normal e anormal, seguro e inseguro, conforme a área psico-emocional, bom e mau, angelical e diabólico, amoroso, ternurento, mas também odioso e violento.

Tantas vezes no dominio social e até profissional, o ser humano parece “normal”, porque adaptado e integrado, mas é nas relações afectivas e amorosas, onde irrompe ou espoleta o caos, a patologia, a descompensação e o descontrole. Surgem na proximidade, no apego e na posse controladora do outro, os medos brutais da separação, da perda, da rejeição e do abandono. Daí a miserabilidade da violência doméstica, conjugal e até no namoro dos mais jovens.

A saúde mental será o que é “assumido” explicitamente a partir de sintomatologia, que é agrupada, numa classificação nosográfica psicopatológica? Ou é um sofrimento, ou dor interna, que por vezes, conduz a certas descompensações relacionais e de contexto, que se esconde por trás da hiperadaptação, normalidade, ou mesmo, normopatia conformista?

Teremos que nos submeter às classificações internacionais, médicas, psicofarmacológicas, ou mesmo comportamentais, ou aceitar, formas de ler, diagnosticar, sentir e intuir a realidade humana do outro, sem conformismos de saber, de poder instituído, ou de universalidade dita “científica”, que muitas vezes não passa de submissão financeira e psicofarmacológica.

A evolução da saúde mental passará obrigatóriamente por uma visão e leitura global, do humano, do paciente em sofrimento, e nunca, de reducionismos ou clivagens da globalidade do Ser em questão, que escondem interesses de natureza obscura, ou de classificações perverso-científicas!

Por: José Luís da Costa Magalhães Gomes (Psicólogo Clínico / Psicoterapeuta)


Obra por: Daniela Martins – @daniela_art_studio – (Uma pintora abstrata portuguesa que começou a pintar em 2017. Ela entende a pintura como uma forma de expressão emocional e sentimental. Daniela também é PR&Marketeer no setor da saúde e sócia da Pineapple Mind, uma associação para aumentar a sensibilização para a saúde mental.).

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