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Quando falamos de relacionamentos, especificamente de relações amorosas, há algumas “verdades universais” que precisamos ter em mente:

  1. Todas as relações têm os seus desafios;
  2. As pessoas vão mudando ao longo do tempo, assim como os seus desejos e necessidades;
  3. Discutir não é um problema, a forma como se discute sim;
  4. Mesmo na presença de amor e de cuidado, eventualmente vamos magoar a outra pessoa.

Talvez existam mais umas quantas “verdades” que fazem das relações aquilo que são: imperfeitas. Assim como as pessoas que as sustentam. Mas imperfeitas não significa insustentáveis. Imperfeitas não significa dolorosas.

No meio de tantas red flags que lemos por aí (que acredito que também nos podem levar a dizer “não, isto não quero” demasiado cedo, sem tempo para percebermos se é mesmo uma red flag ou só uma dificuldade com contexto e superável), de tantos conteúdos sobre relações marcadas por abuso, observo que quando as pessoas estão “efetivamente dentro da relação” o seu olhar fica bastante mais “turvo” perante o que antes considerariam desajustado.

Todas as relações passam por momentos de dificuldade, isto é, momentos de stress (relacionados com mudanças laborais, alteração de papéis desempenhados num determinado contexto, situações de doença, lutos, etc.) mas também há relações que vivem sob stress permanente. E relações que vivem em permanente crise.

Alguns casais que recebo em terapia descrevem-na (a crise permanente) como uma espécie de “inundação emocional”, porque às tantas não sabem exatamente o que estão a sentir; “é tudo e muito ao mesmo tempo”, são “discussões de horas onde não se chega a nenhuma conclusão”, é “dar muito e esse muito nunca chegar”. Quando recebo pessoas de forma individual, mas também com questões acerca de relacionamentos, as queixas não diferem muito, mas há algumas que quero destacar.

  • “acho que aquilo que sinto não faz sentido, se calhar sou demasiado sensível”
  • “prefiro já nem dizer o que penso e sinto pois isso só vai gerar mais confusão”
  • “parece que estou sempre a “pisar ovos” com medo do tom que vou utilizar”
  • “faz-me sentir que estou a falhar (…) que o que me está a pedir até é pouco”
  • “já duvido se as coisas aconteceram mesmo assim… faz-me duvidar de mim!”

Porque é que quero fazer esta comparação entre as frases (e as pessoas, naturalmente) que escuto individualmente e em casal? Quando as escuto individualmente, muitas vezes, o comportamento que me descrevem da sua pessoa parceira encaixa-se naquilo a que chamamos gaslighting, um comportamento de manipulação, poder e controle sobre o outro. Quando recebo as pessoas em terapia de casal, ainda que existam comportamentos que se enquadrem neste tipo de abuso, há um entendimento mais profundo do que realmente se passa e, por conseguinte, a possibilidade de um verdadeiro trabalho nesses comportamentos e na relação. Em conjunto.

Quando observamos os casais a interagir, a falar sobre as suas necessidades, a discutir na presença do terapeuta de casal, vemos ângulos que de outra forma seriam sempre “ângulos mortos”. Um desses ângulos, que muitas vezes está associado a comportamentos de controlo, de abuso, tem que ver com os padrões de vinculação (normalmente ansiosa) na relação amorosa.

Um estudo feito por Rodriguez, DiBello,. Øverup e Neighbors, em 2015, fala-nos sobre a relação entre um estilo de apego mais ansioso, confiança e diferentes formas de abuso. A confiança não tem que ver com a certeza de que a pessoa parceira não irá trair (no sentido comum do termo). Neste e noutros estudos sobre a vinculação nas relações amorosas, a confiança relaciona-se com a resposta às perguntas:

  • Se eu precisar de ti, vais estar lá para mim?
  • Posso acreditar que te preocupas verdadeiramente com as minhas necessidades?
  • Posso confiar que vais responder com vulnerabilidade à minha própria vulnerabilidade?

A pouca confiança na resposta a estas perguntas leva muitas vezes a um questionamento sem fim; a uma crença ou preocupação de que a pessoa pode abandonar o relacionamento e encontrar outro melhor; culminando muitas vezes no desenvolvimento de padrões cognitivos prejudiciais, como atribuições negativas, desconfiança e ciúme. Quando o medo da rejeição/do abandono se torna demasiado intenso, há uma necessidade de monitorizar o comportamento da outra pessoa para tentar encontrar qualquer sinal de disponibilidade (ou indisponibilidade) e muitas vezes a “pessoa-com-um-padrão-ansioso” acaba por perceber sinais ambíguos como ameaçadores para o relacionamento.

Este estudo em particular mostra-nos que a falta de confiança, combinada com um apego ansioso, pode levar a “profecias autocumpridas” que acabam por reforçar as crenças desadapativas. Simplificando, isto quer dizer que quando a “pessoa-com-um-padrão-ansioso” não confia tende a responder de uma forma hipersensível, defensiva, por vezes destrutiva a uma experiência de “possível rejeição/desconfiança”, o que leva a pessoa parceira a distanciar-se, confirmando a crença inicial (“eu sabia que querias ir embora”). Por vezes até a expressão de descontentamento com a pressão exercida é lida como uma confirmação de que “algo não está bem, se não não estavas a reagir assim”.

São ciclos dos quais parece impossível sair. A melhor hipótese para os interromper é:

  1. Reconhecer que emoções e necessidades estão presentes;
  2. Reconhecer a existência do ciclo;
  3. Assumir responsabilidade pela sua perpetuação e interrupção;
  4. Experimentar novas formas de sentir conexão;
  5. Assumir novas posições na dinâmica de casal e tentar novas soluções para as dificuldades.

Saliento ainda que um comportamento abusivo não deixa de o ser por poder ser contextualizado e por percebermos porque se perpetua, com que função. Mas pode ser alternado! A terapia de casal é uma boa forma de começar essa tentativa. Porque a crise deve ser um momento de exceção.

Adriana Bugalho

Psicóloga e Autora do artigo “A Ciência Por Trás do Sucesso das Relações Amorosas

Imagem Por, Belmiro de Almeida, “Arrufos” (Museu Nacional de Belas Artes)

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