Na Europa ocidental, continua a reinar o catolicismo e as celebrações a ele associadas, nomeadamente, o Natal, apesar de, cada vez mais, a celebração deste se ir dissociando da componente religiosa. Religiosos ou não, crentes ou nem por isso, a grande maioria dos portugueses celebra o Natal, quase sempre associado a uma época de alegria, de paz, de amor, de família como, aliás, reitera grande parte das músicas desta quadra. No entanto, será que é sempre assim? Ou será que o Natal também pode trazer consigo angústias, ansiedade, tristeza?
Começando pela ideia de família, atualmente esta conceção pode estar bastante alterada em relação àquilo que acontecia há algumas gerações, o que pode trazer sentimentos menos agradáveis relativamente a esta festividade. Estas expetativas de que a família deve estar unida e feliz estão também presentes nas famílias fragmentadas por divórcios ou, por outro lado, famílias “tradicionais” onde as dinâmicas são de alguma forma desajustadas e nas quais pode ser difícil cumprir com a ideia de “família feliz”. O reencontro com familiares mais afastados, que tendem a juntar-se para esta celebração, pode também ser um fator de stress e angústia por haver expetativas por parte da família nuclear de que devemos gostar dos familiares com quem nos vamos reunir, quando nem sempre é essa a realidade. É frequente haver receio em relação a perguntas que possam ser feitas, como os clássicos “então e namorados/as?” e “como vai à escola/trabalho?”, que nem sempre se tratam de assuntos fáceis para quem tem de responder à pergunta, no entanto, de quem se espera simpatia e cordialidade. Continuamos muito presos à ideia de que “família é família” e que isso significa que existe passe livre para que se diga e faça tudo o que se quer, sem pensar nas consequências que isso terá para a outra pessoa, para além das expetativas de que essa pessoa simplesmente aceite sem grandes alaridos porque, afinal, “é família”.
Para filhos/as de pais divorciados, assistimos com regularidade à dificuldade que é a gestão da divisão dos dias de celebração, tarefa que deveria pertencer aos pais, mas que muitas vezes fica para os filhos, que tentam responder às expetativas de ambos os pais, o que nem sempre é possível, trazendo angústia e até mesmo sentimentos de culpa. Isto pode levar a que os dias de celebrações sejam vividos com angústia, apesar de ser esperado pelas pessoas à volta de que se manifeste apenas alegria.
Existe ainda a questão das perdas, que ficam bastante salientadas nesta época. Aqueles que perderam familiares há pouco tempo, mas também quem sofreu uma perda há mais tempo, podem olhar para as festividades como alturas mais dolorosas em que as saudades e a ausência se fazem salientar. Relativamente a estas situações também existem com frequência expetativas de que, apesar da tristeza sentida, se demonstre alegria e boa disposição.
No caso particular de Portugal, temos ainda a centralidade da comida nas festividades, o que nem sempre é fácil de gerir. Existe a expetativa de que se coma muito e de tudo e não são poucas as vezes em que as pessoas têm de lidar com comentários acerca do que comem, quer seja para “mais” quer seja para “menos”. A pressão das expetativas sentidas pode causar uma enorme ansiedade perante a quadra natalícia, condicionando a disposição global, o que pode entrar, mais uma vez, em conflito com as expetativas de que esta deve ser uma altura de felicidade.
Também para quem está a lidar com uma situação de doença mental, esta época pode ser desafiante. Alguém que esteja a lidar com uma depressão pode ter dificuldade em vivenciar o espírito natalício com alegria e entusiasmo, assim como alguém com ansiedade pode ter dificuldade em gerir a quantidade de estímulos e interações que existem nesta altura, interferindo também na disposição para as festividades.
No fundo, as expetativas face ao Natal giram muito em torno do estado emocional, que se espera que seja de alegria e boa disposição. É esperado que todos nós estejamos satisfeitos com as reuniões familiares, que gostemos das celebrações associados a época, que estejamos gratos por aquilo que temos e pelos que nos rodeiam e tudo isso pode ser difícil de gerir, quer devido a relações familiares complicadas, quer devido a condições de saúde mental como a depressão ou ansiedade.
Se, para ti, o Natal é sinónimo de angústia, tristeza, inquietação, etc., primeiro é importante que saibas que não existe qualquer problema com isso. Apesar de, socialmente, estar instituído que todos gostam do Natal, isso não tem de ser assim. Todos os motivos que te levam a não apreciar esta época ou a senti-la como desafiante, são válidos. Ainda assim, como muitas vezes é difícil evitar participar nas celebrações, deixo-te algumas estratégias que podem ser úteis para vivenciar as festividades com menos angústia:
- Estabelece os teus limites: tira um tempo para pensares quais são as coisas que para ti são razoáveis de tolerar e quais é que não são e define de forma clara e objetiva os teus limites. Desta forma vais poder comunicá-los caso sintas que estão a ser ultrapassados ou colocados em causa.
- Comunicação assertiva: frequentemente parece mais fácil “comer e calar” para evitar conflitos, até porque é isso que muitas vezes nos é incutido como boa educação. Comunicarmos os nossos limites de forma assertiva é importante, não só para nos protegermos e vermos as nossas necessidades atendidas, mas também para que a outra pessoa tome conhecimento de que aquilo que está a fazer não é aceitável para nós.
- Se for necessário, retira-te: o ambiente das festividades pode ser assoberbante e nem sempre é fácil regularmo-nos, pelo que pode ser útil sair da sala por uns minutos para restabelecer alguma energia e repor alguns recursos emocionais. No tempo de ausência podes até realizar algum exercício de relaxamento, como a respiração diafragmática.
- Definir uma pessoa de conforto: nem sempre existem condições para tal, mas, sendo possível, define uma pessoa que esteja presente nas festividades e com quem te sintas confortável e à vontade, para ser o teu porto seguro. Comunica previamente a essa pessoa que, caso não estejas a ser capaz de gerir aquilo que estiveres a sentir, que é a ela que vais recorrer. Tenta ser o mais claro possível na forma como essa pessoa te pode ajudar caso seja necessário.
- Limita a interação com as pessoas com quem não te sentes confortável: isto não significa “fugir” das pessoas, significa que não tens de promover o contacto com essas pessoas e que, se forem elas a querer estabelecer essa interação podes, delicadamente, retirar-te, sem teres de te sentir na obrigação de te manteres na situação.
- Faz uma lista de estratégias de regulação: cria a tua própria “caixinha de ferramentas” com as estratégias que sabes que funcionam contigo para teres acessível caso precises de lhes recorrer durante as festividades.
Inês Serôdio
Psicóloga Clínica e Autora do artigo “Personalidade Narcísica: Uma Explicação” e “Amores, Paixões e Relações“
Imagem Por, Thomas Kinkade, “A Holiday Gathering”
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