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Todos os dias, o senhor António aparecia na padaria para pedir as  suas carcaças de pão quentinho. Sempre curvado, quase com a cabeça a  chegar-lhe aos joelhos das pernas, nunca ninguém lhe tinha visto o rosto.

Marília, a mais antiga padeira do bairro, entregava-lhe sempre o pão  do dia para as mãos, sem saber se ele ria ou se chorava. Também nunca  tinha visto ninguém a acompanhar aquele pobre senhor nas suas idas à  padaria e por isso, dada a sua condição física, deduziu rapidamente que  ele vivia sozinho.

– Senhor António, aqui tem, o seu pão quente, dizia-lhe ela.

Todas as pessoas do bairro conheciam o homem curvado. Existia o  mito urbano de que ele já nascera assim, com a cabeça curvada sob os  joelhos e que os pais o tinham abandonado à nascença, perante tamanha  aberração. Passeava sempre sozinho com o seu cão já velhote pelo jardim  central e tinha a sua rotina bem estabelecida: acordar cedo e ir buscar o  pão quente à padaria.

Estranhamente, muitas pessoas tinham medo do homem curvado. As  vozes mais desconfiadas diziam que ele tinha nascido sob os auspícios do  Diabo e que, por causa disso, lhe faltavam as orelhas – pior do que tudo  isto, a sua condição era um castigo de Deus! Por causa destes rumores  que há muitos anos circulavam no bairro, o senhor António foi banido das  festividades da cidade. Ninguém o convidava para assistir aos concertos  e à música que se celebrava na rua e praticamente ninguém, o queria  tocar: exceto Marília.

Uma vez, ao entregar-lhe o pão quente, a padeira sentiu o calor que  provinha das mãos do senhor António. Pensou logo, que se ele fosse  mesmo filho do Diabo, aquelas mãos não a poderiam ter feito sentir tão  amada e terna. Estava ali, perante ela, uma boa alma.

Mas o que se sente, não se pode explicar, como bem sabia Marília.  Algo dentro dela lhe dizia, que ela sabia algo, sobre o homem curvado,  que mais ninguém sabia. Ela conhecia a sua alma por dentro.

Um dia, ela tomou coragem e quando viu o senhor António a entrar  na padaria, perguntou-lhe, em voz alta, para todos ouvirem:

– Senhor António, há quanto tempo vive assim curvado? Nunca lhe vimos o rosto.

Naquele instante, instalou-se um silêncio confrangedor na padaria.  Uma mãe puxou o filho para ao pé de si, enquanto o proibia de comer ali,  as sete bolinhas quentinhas que tinham acabado de sair do forno. O  menino, que já tinha ouvido falar no homem curvado, percebeu logo que  aquela era a confrontação da comunidade com o homem que mais  temiam: seria ele mesmo, filho do Diabo? Será que andava curvado para  esconder os cornos com os quais veio diretamente do Inferno?

Naquele dia, ouviu-se pela primeira vez, a voz do senhor António.  Muito terna e meiga – o que a todos surpreendeu – apenas disse isto:

– Marília és uma boa alma. A única que não tem medo de mim e que não me julga.

A padeira ficou emocionada com aquelas palavras. Quis abraçar o  senhor António, mas ele fez um gesto que a mandou parar. Tinha algo a  dizer para todos ouvirem:

– Ao contrário daquilo que as pessoas pensam, não sou filho do Diabo e não vim do Inferno. Comecei a curvar-me, a partir dos meus vinte anos, quando comecei a perceber a natureza humana. Com o passar dos anos, a minha tristeza transformou-se em desolação, com tudo aquilo que vi passar pelos meus olhos. Estou curvado porque não quero ver mais, o que o ser humano faz ao seu semelhante. Decidi que apenas quero ver o meu fiel amigo cão e mais ninguém.

Todos na padaria ficaram em silêncio com esta revelação. Foi então  que Marília saiu do balcão, com um saco de pão quente e o entregou em  mãos ao senhor António. Naquele momento, ele alinhou as costas e  começou a subir, a subir, a subir…até se ver finalmente o seu rosto!

O homem curvado tinha uns magníficos olhos azuis – mas eram uns  olhos com uma particularidade. Quem o olhava de frente, conseguia ver o  reflexo da sua alma. Ali, entre uma torrente de energia e de cores, Marília  conseguiu ver o seu próprio espírito nos olhos de António.

Naquele dia, a vida mudou naquele bairro. Agora, de cada vez que  alguém age com falta de respeito, amizade e amor pelo outro, essa pessoa  decide passar pelo outro…curvada.

Por: Maria Inês Rebelo (Escritora e Autora das obra “HIPNOSE – O regresso ao passado”)


Imagem, Por, Rembrandt van Rijn, “Study of an Old Man in Profile”

4 thoughts on “O Homem Curvado

  1. Uma história com moral, moral social que nos põe a pensar quão presunçosos somos face a uma situação que não queremos encarar de frente.
    Mas há sempre alguém que não deixa passar os problemas ao lado. Encara-os de frente e tem coragem para fazer a diferença.
    O teu conto está muito bem desenvolvido com princípio, meio e um fim com uma criatividade que eu chamaria “circular” por andar à volta da palavra “curvado”. Parabéns Inês.

    1. Muito Obrigada! Esta história foi escrita com muito carinho. Ainda bem que chegou ao coração. Um beijinho,

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