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Pergunto-me como terá sido possível olhar para aquele rosto e sentir que nele habitava (e habita) uma enorme tristeza. Como percebi isso apenas num olhar? No olhar de alguém que mal conheço?

Nunca tinha falado com aquele homem. Pelo menos, se alguma vez falei, sinceramente não me recordo. Mas o seu rosto intrigou-me, tinha algo de familiar. E foi rapidamente que perguntei ao dono daquele rosto se estava bem. Uma pergunta tão simples e, simultaneamente, tão complexa. Digo que perguntei rapidamente porque estávamos a conversar há cerca de cinco minutos. Ainda nos encontrávamos na parte da chamada “conversa de circunstância”, embora nenhuma parte da conversa me tenha parecido supérflua. Tudo foi muito verdadeiro. E a rapidez da pergunta foi inevitável ao olhar para aquele rosto, um rosto provavelmente bonito, mas terrivelmente triste. Foi, por isso, urgente a minha pergunta. E fico satisfeita por tê-la feito assim: sem receios, sem pensar demasiado se estava a ser inconveniente ou atrevida. Julgo que, se pensasse, chegaria à conclusão de que sim, de que estava a ser tudo isso. Não deixara de ser um homem que trocava as primeiras impressões comigo. Não éramos mais do que dois desconhecidos, duas pessoas aparentemente muito diferentes que se encontraram à porta de um hospital. Mas isso não me importou e continua sem me importar! Às vezes é preciso não pensar. Quem me dera, tantas vezes, não pensar. E quem me dera não pensar nas vezes em que não pensei. Como seria tudo mais fácil…

A conversa fluiu naturalmente e atingiu um nível de profundidade bastante surpreendente, tendo em conta tudo o que já referi. Senti que lhe toquei no coração, um coração cheio de feridas e receios e vergonha e batimentos acelerados. Um coração que, ainda assim, foi capaz de se abrir um pouco, ali, perante o que ia escutando. A mente confusa, perturbada, depressiva. Compreendi-a tão bem e tão facilmente. A certeza de que já só poderia sobreviver, sem espaço para sonhar e planear um futuro alegre. Ou até apenas um futuro banal, comum. É tão bom ser comum. Tudo isso me foi evidente nele. Eu fiz o que pude. Argumentei desajeitadamente. Por fim, limitei-me a abraçar o homem de rosto triste e despedi-me.

Caminhei até ao carro em passos lentos e pensativos. Também eu estava triste por ver aquele rosto triste. Também eu já conhecera aquela tristeza. E voltarei a conhecer. Então, de certo modo, fiquei feliz. Feliz porque aquele encontro me deu um novo objetivo.

Sim, eu sei: já tenho objetivos que cheguem e provavelmente estou a ser demasiado ambiciosa! Mas, desde aquele encontro, tenho caminhado a cada dia com a esperança de contribuir para acabar com o rosto da tristeza do homem à porta do hospital. E, a cada pequeno e difícil passo que dou nesse caminho, também eu me descubro mais feliz. Talvez o rosto da tristeza não fique assim para sempre. Talvez o homem do rosto da tristeza venha, um dia, a caminhar até ao carro em passos lentos e pensativos, e se descubra feliz, e se julgue capaz de ajudar um outro rosto da tristeza. Afinal, quantos rostos tristes não andam por aí à espera de um encontro com a esperança?

Daniela Rosa e Lourenço

Escritora e Autora do livro “A Estrela do Céu que queria ser Estrela do Mar

Imagem Por, Pablo Picasso, “Portrait de Jaime Sabartes

7 thoughts on “O Rosto da Tristeza

  1. Que todo rosto triste que muitas vezes nos é espelho, encontre um olhar de compaixão!
    Parabéns à autora, podemos notar em cada palavra a delicadeza de sua alma.

    1. Não podias ter dito melhor Eliene!! Em cada palavra encontramos a beleza (e a tristeza) do mundo. Mas assim que acabamos de o ler prepondera em nós a esperança, afinal o que seria de nos sem ela

    1. Um dos enormes poderes da escrita é mesmo essa, a sensibilidade e profundidade; e a Daniela é bem-sucedida nisso ✨

  2. Que lindo texto, parabéns à autora pelo talento e exemplo…transmite-nos uma mensagem de pura compaixão e coragem. Algo irá mudar, de certeza, na vida deste ser, porque teve a sorte de se cruzar com alguém que fez a diferença, no corropio da vida que vivemos, empático, desprovido de medos e preconceitos, persistente, que ainda o vai ver sorrir… depois de se ter deparado com o rosto da esperança, já nada voltará a ser como dantes!

    1. Obrigado Inês, ficamos imensamente felizes por saber que gostaste!! O texto está mesmo bem escrito e a autora fez um trabalho incrível 🙂

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