Imensos olhos verdes, alentejana de nascença e paixão, plena de humanidade e lirismo, assegurava Dona Almerinda que, não obstante acontecimentos e circunstâncias, a minha voz era um fio de doçura, diálogo meigo, comovente expressão que lhe falava. Senti-me a um tempo frágil como uma pétala ameaçada de sopro inclemente e avivada como a flor de tom cheio, intenso, atraente, na parte incultivável das suas terras. Dona Almerinda, gostava de fotografar esta papoila tão diferente das que tenho visto por aqui. Posso? Dona Almerinda escutava-me atenta, escutava a minha voz. E eu desejava, a cada palavra, tomar um gosto mais profundo a esse doce desfiar, retê-lo no toque comovido, trémulo, que procurava disfarçar, a fim de não incorrer num conflito de emoções (minhas), nada desejável naquele lugar, naquele entardecer.
— “Claro está que pode!” — respondeu cordial, efusiva; nem precisava de perguntar. Tirei uma fotografia, mais do que uma, aliás várias, para escolher a que melhor demonstrasse o caráter violáceo de uma flor-ametista, flor-semipreciosa-preciosa, papoila-brava-dos-campos.
Trocámos algumas palavras mais antes de abandonar as terras da Dona Almerinda. Olhei, uma última vez, docemente, o verdor cristalino dos seus olhos. Olhei, docemente, o caminho de terra barrenta debaixo dos meus pés e aí imaginei todas as vozes possíveis zelando por mim, acompanhando-me pouco a pouco a casa antes que anoitecesse.
Imagem Por, Claude Monet, “Poppy Field near Vétheuil” (Foundation E.G. Bührle Collection)
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