Como nascem as tradições? As tradições formam-se por meros caprichos do acaso. Assim pelo menos aconteceu com o nosso círculo amistoso, tínhamos várias, eramos homens tradicionais, reformados, as tradições foram formas que encontrámos de cuidar uns dos outros quando aqueles de quem cuidámos a vida toda já não cuidavam de nós.
Bebíamos café ao domingo de manhã na esplanada da tasca que abeirava a praia, às quartas-feiras ao fim do dia jogávamos à malha, uma vez ao ano desencostávamos as motorizadas das paredes das garagens onde repousavam e passeávamos por terras longínquas e desconhecidas. Tradições, havia outras tantas, sou traído pela fraca memória. Mas a última de todas, a que se cumpriu religiosamente foi a que mais naturalmente se formou.
Primeiro eramos oito, um dia, o Afonso morreu, atouco-o o coração, ficámos sete, no dia da morte do Afonso, tínhamos um jantar agendado, por via das circunstâncias, motivos de força maior, adiámos o jantar para o dia seguinte, após a cerimónia fúnebre. O Afonso, infelizmente não pode comparecer, mas nós sentimo-lo, sentimos a sua ausência. Sabíamos que este dia chegaria, em idades avançadas, quer cedo, quer tarde, alguns sortudos no tempo certo, ninguém se livra de pagar à terra o seu empréstimo, de outorgar ao corpo o merecido descanso, mas enquanto não morremos, julgamo-nos eternos.
Está ele melhor que nós, dizíamos uns aos outros, meras palavras de falso consolo que nos parecem acudir no momento em que nos debatemos com a nossa própria fragilidade, vulnerabilidade, mortalidade.
Depois morreu o Carvalho, após a estadia de um mês no hospital, onde o visitámos em conjunto e, ainda que guardando a esperança, em todo o caso nos despedimos. Soubemos de imediato que a circunstância nos obrigava a marcar encontro após o último adeus, para sentirmos uma vez mais que estávamos todos reunidos, a presença dos seis e a ausência dos dois.
O Ramalho e o Cristóvão, irmãos, o mais velho e o mais novo do grupo, contando sempre com os ausentes, foram nos roubados pelo destino numa tarde piscatória, atividade que prezavam e à qual se dedicavam juntos há mais de duas décadas. O mar bravio engoliu o Cristóvão e sem pensar, ou a pensar demais, o Ramalho jogou-se mar adentro intendendo resgatar o irmão, recebendo o mesmo tratamento fatal. Aquando do tão esperado aparecimento dos corpos, a despedia foi acompanhada de um novo agrupamento que fez cumprir a tradição. Eramos oito. Quatro de nós ainda vivos, passámos o serão a recordar as tradições onde o não comparecimento dos membros em falta era de motivos provisórios.
Poucos meses adiante, o Jacinto ficou-se, como se diz de costume, se por tristeza, se por falta de motivos à permanência ou por término natural das funções do corpo, passou à categoria de ausente, ainda que se juntasse a nós quando nos juntámos por ele. Acontecimentos semelhantes levaram o Arménio, ou como lhe chamávamos, o Ménito. Deixou-se cair no sono da noite para não voltar a levantar-se com a luz do dia. De todas, foi seguramente a morte mais bela, se é que a morte alguma vez se pode caraterizar com adjetivos positivos, ou teve sorte, ou soube escolhê-la, foi-se em paz. Despedimo-nos dele no seu enterro, e seguimos para o reencontro: Presentes, eu e o Ricardo, uma cartada, duas cervejas e três abraços lacrimosos em tom de última saudação mútua, uma vez que não sabíamos quem a vida, ou neste caso a morte, levaria primeiro.
Estou cá eu, o desafortunado, no momento posterior à então última saudação do Ricardo, uma saudação de despedida já não mútua, realizada agora só por mim. O Ricardo era o penúltimo dos oito amigos. Cedo as minhas lágrimas a este livro de apontamentos, que antes usava para marcar as nossas reuniões e que hoje utilizo para relatar o fim delas. Livro este que pouso na mesma mesa onde nos encontrávamos, e onde cumpro a tradição, eu e as ausências de todos os outros. O meu tempo chegará também, disso estou certo, e estou certo também, que após o meu funeral nós não estaremos cá, não haverá ninguém presente, mas as nossas ausências encontrar-se-ão à volta desta mesma mesa e a tradição cumprir-se-á, uma última vez.
Assinado, o Último presente
Por: Simão Crespo João (Apresentador do Podcast Tenho Media Pa’Isto e Criador do Enso Project)
Imagem Por, Ferdinand Georg Waldmüller, “Christtagsmorgen” (Kunsthistorisches Museum)
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