A noite caía. As nuvens cobriam o céu azul acinzentado, aglomeravam-se no firmamento, tornando o calor do final da tarde de Verão ainda mais opressivo. O leve sopro de vento não era suficiente para acalmar a tempestade que se avizinhava. O ar abafado molestava-lhe a frescura da pele, relembrando-a do temporal iminente. O vento soprou mais forte e um remoinho de folhas levantou-se do chão.
Ela continuava a andar. Ensonado, um cão olhou para ela. Acariciou-o, sentindo o seu pêlo áspero contra a palma da mão, picando-a, num sinal claro de que não se devia aproximar, um sinal para não interferir na atmosfera de cada um. O cão olhou-a de forma solene, numa tentativa de fazer a intrusa aperceber-se da sua necessidade de estar sozinho.
E ela continua a andar. Encosta-se à parede para deixar passar um casal de namorados. Distrai-se a pensar neles e em como o amor é puro, enganador e cruel. Perdida em pensamentos, assusta-se ao ouvir o rastejar de passos no portão à frente. Um velho observa-a, na maneira única de observar que apenas os velhos possuem: o olhar vítreo, fixo, impávido, preso a um passado já esquecido. Um beijo, uma sonata tocada ao luar, ou simplesmente a ideia dos jovens de que nunca serão tocados pela morte. A Morte. Que agora os rodeia a cada movimento que fazem, que os abraça a cada respirar.
“Hospital”. Ela ignora aquela voz longínqua na sua mente. Pensa que se trata apenas de mais uma das inúmeras vozes perdidas na sua cabeça. Não sabe como é que esta se livrou da cadeia de pensamentos e emoções escondidos num recanto da sua consciência. “Sabe onde fica o hospital privado?” ouve de novo a voz. Vira-se e vê um carro parado, onde uma mulher grávida, sentada ao lado do condutor, a questiona em desespero. Murmura umas direcções e continua a andar.
E então o carro bate-lhe. Ela sente-se a levitar, embalada pelos cheiros daquele final de tarde de Verão. Cai. Com choque e surpresa, sente o impacto nos ossos do seu corpo e sente-os a estilhaçar. Fecha os olhos e quando os abre, uma névoa ensombra-lhe a visão. Vê um eucalipto contra o céu e por uma fracção de segundo vê a face dele entre os ramos, a soprar uma folha, que cai na eternidade.
Sorrio. Não sinto dor, apenas um leve formigueiro que me faz cócegas em todo o corpo. Sinto o sabor doce e metálico do sangue que me enche a boca e sorrio, sentindo a sua viscosidade quente na pele.
O mundo desaba à minha volta, e a chuva cai. O meu sangue mistura-se com a chuva, cola-me a roupa ao corpo, encharca-me o cabelo.
Eu continuo a sorrir, enquanto sinto a vida a esvair-se juntamente com a chuva e com o sangue. “É maravilhoso” penso. A tua cara volta a aparecer nos ramos do eucalipto e sopras-me um beijo. Sinto-me a flutuar. Olho a mulher grávida que segura a minha cabeça no seu colo, está ajoelhada no meio da rua. “Não vale a pena” digo-lhe.
Um cão ladra ao longe. O meu corpo está cada vez mais afastado, flutua cada vez mais alto. O passeio acaba aqui.
Por: Nadia Batista (Escritora e Autora das obras, “Noite das Bruxas”, “Micaela”, “O Sonho de Ofelia” e “Sociedade do Horror Português”)
Imagem Por, Jean-Baptiste-Camille Corot, “Orpheus Leading Eurydice from the Underworld”
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