O que aconteceu, foi num dia qualquer, numa semana qualquer, num mês qualquer, num ano que não vou dar a conhecer. Basta saberem que tinha pouco mais de trinta anos, mas o ano em que nasci, não tem importância maior para a história.
O céu estava revestido de uma esvaecida cortina que crucificava qualquer lamento, mas não se demorem a pensar qual estação seria, pois podia ter sido qualquer uma.
Ao longo dos anos, o que eu dizia, era bem recebido por quem escutava, ou pensava eu que escutava, pois nunca fazia menção de questionar quem estava à minha frente se assim era. Para quem não me conhecia, ou até para quem me conhecia razoavelmente, podia ser que julgassem que o que eu dizia não era interessante, mas, eu, que me conhecia muito bem, sabia que todas as minhas palavras tinham grande importância, ao menos para mim.
Como alguns sabem, prejudica-nos ter algo dentro de nós e não poder escoá-lo, e eu, tendo em conta certas vicissitudes, precisava de um bom ouvinte. Há um período em que o dia nos ajuda a sorrir, mas nem sempre é assim, aliás, o que é de maior interesse, acontece à noite. A diminuta luz e as sombras que se formam, ajudam-nos a enveredar por casos de detestávelsolução, mistérios que só uma mente perspicaz consegue desvendar. Não quero dizer que eu seja uma dessas mentes altivas, mas tenho momentos de inquieta perscrutação que até me alegram e me retiram dessa solenidade melancólica que muitas vezes me enfeitiça. Quando apenas o silêncio nos envolve, qualquer ruído nos mantém em atenção, pior é quando surge um barulho que não se estava à espera de ouvir, como a estridência lancinante de um grito. O espanto apanha-nos e logo sentimos o corpo tremer enquanto um arrepio perfura-nos a espinha.
Alguém estava no lugar errado à hora errada.
Saindo do sofá em que dormitava, quis saber de onde é que vinha o tal grito e fui até à janela. Através dela, pude ver a rua iluminada por um candeeiro e, agarrado ao poste, via alguém, uma das mãos tocando no peito como se latejasse de dor.
Descendo as escadas o mais rápido possível, descobri que, o ser em questão, era um homem. Por entre a respiração arfante e o ricto doloroso, amaldiçoava a mulher que lhe tinha esfaqueado. Não sei como esse homem usualmente era, mas não gostei que se referisse a essa mulher com uma abundância de nomes vis.
Pelo pouco que me foi permitido desvendar, ela apenas pretendeu defender-se dos ataques brutais desse miserável pedaço de humanidade.
Como nada poderia, ou queria, fazer para o ajudar, decidi contar-lhe a trágica história da minha vida e como perdi a quem amava só por não estar ao lado dela na altura em que foi atacada.
Estava ciente de que ele podia não ouvir tudo o que eu tinha para dizer, devido aos seus paroxismos finais, mas mal não fazia, pois o que se espera de um ouvinte é a capacidade de não interromper quando alguém desabafa.
Queria contar tudo o que tinha para contar, até a forma como me livrei dos dois atacantes que tanto mal fizeram à mulher que eu amava. Afinal, a quem podia dizer o que fiz sem esperar repercussões, como a prisão ou a morte?
Felizmente, nada de muito grave aconteceu à deusa que tanto estimava, pois ela ainda vive, mas, por ter sido assaltada e violada, sentiu a necessidade de estar longe de tudo e até de mim. É que nessa noite em que o crime ocorreu, tínhamos discutido e eu, no calor da situação, disse-lhe para morrer, algo que não queria realmente.
Dias mais tarde, descobri que ela tinha saído de casa logo a seguir a mim, de modo a passar a noite na casa de uma amiga. Foi durante o percurso que o assalto e a violação aconteceram.
Após todos os procedimentos policiais, suspeitou-se de dois homens, mas não havia provas que corroborassem a sua culpa. No entanto, fiquei de olho neles e até os persegui.
Embora não houvesse forma de os incriminar, o meu instinto dizia-me que eram eles os culpados de tão grande perda na minha vida. Envolto em confabulações, sabia muito bem que tinha de os apanhar desprevenidos, pois apenas dessa forma haveria o desfecho que almejava.
Acalme-se! Não grite! Não quero que o oiçam! Será que é preciso pôr a minha mão na sua boca para silenciá-lo? Sim, acalme-se, está tudo bem. Sei que está ocupado com as suas dores, mas prometo não me dissipar no meu relato. O que tenho a dizer não é muito extenso.
Bem, onde ia?
Ah, sim… Um, apanhei quando entrou num beco escuro, sei lá para fazer o quê, tentando não fazer barulho. Ataquei-o pelas costas, esfaqueando-o várias vezes, e nem deve ter-se apercebido do que lhe aconteceu de tão bêbado estava. Foi no exacto momento que o vi morrer que um estranho alívio se formou no meu íntimo.
Outro, apanhei-o num bar completamente cheio, uma outra vez pelas costas. Dessa feita, tinha levado uma seringa envenenada e ninguém reparou na agulha que lhe espetei no rim, pois a embriaguez tem muito a ver com falhas na observação. Escondendo a seringa no bolso do casaco, fui até ao balcão e pedi uma cerveja. Olhando para trás, vi o homem tocar nas próprias costas enquanto estrebuchava. Vários homens, agitados com o comportamento do seu amigo, tentaram ajudá lo, mas de nada valeu, pois ele caiu desacordado e deixou de dar sinais de vida. Voltando-me para o balcão, continuei a beber a cerveja, sabendo que ninguém me poderia incriminar.
Pronto, já acabei. Está a ver, não demorei muito. Hum… Ainda me ouve? Sim? Hum… Pois… Espero que tenha ouvido a última parte. Assim não vale, deixar-me com a dúvida.
Enquanto olhava para o homem estirado no chão, sorri por finalmente ter desabafado o que tinha feito, mas não tinha a certeza se me tinha ouvido até ao fim. Não sei o que fazer agora, porque não queria procurar uma outra pessoa que, estando moribunda, fosse a mais interessante de modo a desabafar os meus crimes. Talvez a dúvida não se apegue a mim, ao menos espero que não, e assim tentarei mentalizar-me de que tudo acabou bem e que voltarei a dormir. Se tal não acontecer, que chatice, talvez até volte a matar.
Imagem Por, Ilya Repin, “Ivan the Terrible and his son Ivan on November 16, 1581”
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