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Muitos de nós, em alguma fase da vida, já ouvimos ou até defendemos a ideia de que o ciúme é uma manifestação de amor genuíno. Contudo, é fundamental compreendermos que sentimentos e comportamentos de posse não estão associados a uma ligação amorosa saudável. Como tal, é indispensável a discussão e educação social no sentido de desconstruir esta conceção.

Mas o que é, realmente, o ciúme?

O ciúme, na sua essência, é uma emoção complexa que combina sentimentos de medo, insegurança e rivalidade, frequentemente desencadeada pela perceção de uma ameaça real ou imaginária à relação. Como Esther Perel frequentemente observa no seu trabalho, é uma das emoções humanas mais primitivas e pode ser um indicador de insegurança pessoal mais do que uma expressão de amor intenso. Portanto, o ciúme não é uma emoçao unidimensional. Na verdade, pode ser categorizado como ciúme reativo (aquele que surge como resposta a uma ameaça real à relação) e ciúme de suspeição (que não tem por base eventos reais, mas sim inseguranças pessoais e medos infundados). Compreender estas diferenças é essencial para determinar, no contexto da relação amorosa, qual a melhor forma de lidar e gerir a presença do ciúme. Mas para compreender o conceito de ciúme, é preciso, também, olhá-lo a partir de uma perspetiva evolutiva. Nos primórdios da humanidade, o ciúme poderia ter servido como um mecanismo de alerta contra potenciais ameaças à coesão do grupo ou à própria sobrevivência. Nesse contexto, reações de ciúme eram, possivelmente, uma forma de proteger recursos e garantir a procriação. No entanto, na sociedade moderna, onde as relações têm um teor mais emocional e menos centrado na sobrevivência, o ciúme excessivo torna-se menos adaptativo e pode ser contraproducente. Além disso, é importante refletir também sobre a relação entre ciúme e cultura. Como o ciúme é percebido e valorizado pode variar de cultura para cultura. Em algumas sociedades, pode ser visto como sinal de paixão e dedicação, enquanto noutras é considerado problemático ou indesejado. Por isso, torna-se fundamental reconhecer o papel que a cultura desempenha nas nossas conceções de ciúme e amor.

Comunicação e interpretação do ciúme

A comunicação é a espinha dorsal de qualquer relação. No entanto, em muitos casos, as mensagens transmitidas e recebidas estão repletas de mal-entendidos e interpretações erróneas, especialmente quando se trata do ciúme. Paul Watzlawick, um dos mais influentes teóricos da comunicação, defendia que é impossível não comunicar. Ou seja, tudo o que fazemos e dizemos (ou não fazemos e não dizemos) num relacionamento transmite uma mensagem. Quando falamos de ciúme, muitas vezes não estamos apenas a comunicar o sentimento em si, mas também uma série de emoções e inseguranças subjacentes. Na verdade, a manifestação do ciúme pode ser a ponta do icebergue de uma série de sentimentos. Por exemplo, por detrás do “Porque é que falaste com aquela pessoa?”, podem estar mensagens mais profundas como “Sinto-me inseguro(a) sobre o nosso relacionamento” ou “Tenho medo de não ser suficiente para ti”. Watzlawick também falava de ciclos de retroalimentação (feedback) na comunicação. Por exemplo, uma pessoa pode expressar ciúme porque se sente insegura. O(a) parceiro(a), ao interpretar o ciúme como uma falta de confiança, pode distanciar-se, o que, por sua vez, intensifica o ciúme e a insegurança da primeira pessoa. Este ciclo pode perpetuar-se se não for reconhecido e interrompido. É, por isso, notória a necessidade de clarificação destas mensagens. Em vez de fazer suposições sobre o que está por trás do ciúme, é vital criar espaço na relação para discussões abertas. Um simples “O que te fez sentir assim?” pode abrir caminho para um diálogo mais profundo e esclarecedor. Por último, pode ser importante para o casal “metacomunicar”. Metacomunicar não é mais do que falar acerca da comunicação. Pode ser útil para os casais discutirem não apenas o conteúdo das suas conversas, mas também como comunicam. Por exemplo, reconhecer padrões como “Quando me expresso de X maneira, tu reages de Y maneira”.

Dinâmicas de poder e ciúme

As dinâmicas de poder têm uma presença insidiosa em muitas relações amorosas, influenciando, muitas vezes de forma subtil, a forma como os parceiros interagem entre si. Quando combinadas com o ciúme, estas dinâmicas podem complicar ainda mais as interações e a comunicação dentro do casal.

  • Controlo e ciúme: O ciúme, em certas circunstâncias, pode ser usado como uma ferramenta para exercer controlo sobre o outro. Quando um dos parceiros utiliza o ciúme para justificar a imposição de limites ao outro – como controlar com quem socializa, que roupas veste ou como passa o seu tempo – estamos a entrar num território que ultrapassa o ciúme e entra na manipulação.
  • Insegurança e ciúme: Uma pessoa que se sente insegura pode também usar o ciúme como uma forma de recuperar um sentido de poder ou controlo numa situação onde se sente vulnerável. No entanto, essa é uma falsa sensação de poder, pois, na realidade, está a ser conduzida pela insegurança e pelo medo.
  • O ciúme como reflexo de desigualdades: Em alguns relacionamentos, pode haver uma perceção desigual de poder entre os parceiros. Quando um parceiro sente que tem menos influência ou valor na relação, pode manifestar ciúme como uma forma de reequilibrar essa dinâmica percebida.

Paul Watzlawick, ao analisar as dinâmicas de comunicação, realça como certos padrões comunicativos podem ser indicadores de desequilíbrios de poder. A “simetria” e a “complementaridade” são duas formas de interação que o autor identificou. Em relações simétricas, ambos os parceiros lutam pelo poder, o que pode levar a escaladas de conflito. Já nas relações complementares, um parceiro assume uma posição dominante e o outro uma posição submissa. O ciúme pode ser exacerbado em ambos os cenários, seja como parte da luta pelo poder ou como reação à posição percebida. Assim, reconhecer e compreender as dinâmicas de poder subjacentes é fundamental para uma abordagem saudável ao ciúme. Ao desvendar estes padrões, os casais têm a oportunidade de construir relações baseadas na igualdade, no respeito e na compreensão mútua.

Consequências do Ciúme Intenso

O ciúme, quando experienciado em níveis intensos e prolongados, pode ter repercussões significativas na saúde emocional, mental e até física dos envolvidos, assim como na dinâmica relacional:

  • Desgaste Emocional: A constante sensação de suspeita e desconfiança pode levar a um estado de ansiedade crónica. Estar constantemente em alerta e interpretar cada ação ou palavra do(a) parceiro(a) como uma potencial ameaça é exaustivo e pode levar ao aparecimento de sintomas depressivos.
  • Isolamento Social: Em casos extremos, um dos parceiros pode começar a evitar situações sociais para prevenir episódios de ciúme. Isto não só limita a vida social do casal, como também pode conduzir a sentimentos de solidão e isolamento.
  • Conflitos e Tensões Constantes: Discussões frequentes, muitas vezes sem resolução, podem tornar-se a norma para o casal. Estes conflitos constantes podem levar ao desgaste da relação, resultando em distanciamento emocional e, em alguns casos, à rutura.
  • Impacto na Autoestima: A pessoa que sente ciúme pode começar a questionar o seu próprio valor, perguntando-se repetidamente porque não é “suficiente” para o(a) parceiro(a). Por outro lado, a pessoa alvo do ciúme pode começar a sentir que não é digna de confiança, independentemente das suas ações.
  • Repercussões Físicas: O stress crónico associado ao ciúme intenso pode manifestar-se fisicamente através de problemas como insónias, dores de cabeça, problemas digestivos, entre outros.
  • Impacto nas Relações Futuras: Mesmo que uma relação termine, o ciúme intenso pode deixar cicatrizes duradouras. Pode levar a padrões de desconfiança em futuros relacionamentos ou ao medo de se envolver profundamente com alguém novamente.

John Gottman, através dos seus estudos sobre relações amorosas, identificou o desprezo, a crítica, a defensividade e a obstrução como os “quatro cavaleiros do apocalipse” em termos de precursores de ruturas nas relações. O ciúme intenso pode, facilmente, dar origem a estes comportamentos tóxicos, principalmente se não for gerido de forma adequada.

A Jornada rumo à Segurança Emocional

O ciúme, enquanto emoção natural, requer uma gestão cuidadosa para não se transformar num obstáculo nas relações amorosas. A chave para uma gestão eficaz do ciúme reside em desenvolver estratégias de coping saudáveis e em embarcar numa jornada de crescimento rumo à segurança emocional. Antes de mais, é fundamental reconhecer e compreender as origens do ciúme. Uma introspeção profunda pode revelar inseguranças passadas, traumas ou experiências que alimentam esse sentimento. Ao entender a raiz do problema, é possível lidar com ele de forma mais direcionada. Estabelecer um diálogo aberto com o(a) parceiro(a) sobre sentimentos e inseguranças pode ser extremamente benéfico. É essencial que se expressem de uma forma que não seja acusatória, mas sim voltada para a compreensão mútua. A ajuda de um profissional, como um terapeuta de casal ou psicólogo, pode fornecer ferramentas e perspetivas úteis. Estes especialistas podem ajudar a desvendar padrões relacionais disfuncionais, ajudar a desenvolver estratégias de coping eficazes para o casal e orientar o casal na construção de uma base mais sólida. Como Esther Perel muitas vezes realça, a segurança emocional não é apenas o produto de uma relação amorosa estável, mas também do compromisso individual em confrontar e trabalhar as próprias inseguranças. A jornada rumo à segurança emocional é tanto um empreendimento individual como relacional. Adotar uma abordagem proativa e intencional no desenvolvimento de estratégias de coping e na procura pela segurança emocional é vital para navegar as complexidades do ciúme e construir relações amorosas saudáveis e enriquecedoras.

Carina Rodrigues

Psicóloga
// 1.º artigo da série de artigos sobre mitos nas relações amorosas.

Imagem Por, Jean Auguste Dominique Ingres, “Paolo et Francesca” (Musée des Beaux-Arts d’Angers)

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