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A espuma branca tocava-lhe os tornozelos. Ouvia-a desvanecer-se nos grossos  grãos de areia molhada e pesada que lhe cobria os pés. A maré descia e a água, cada vez  mais fria, tocava-lhe ao de leve na pele bronzeada pelo sol, que se escondia ao fundo. A  cor azul clara do mar escurecera, dando lugar a uma tonalidade cinza escura, madura,  experiente. Uma leve brisa fazia os seus finos cabelos ondularem numa dança cerimonial.  O som das ondas embalava-a. Deixava-se embalar, com os olhos fechados. A vida em  suspenso. Aqueles minutos que eternizava. Na fotografia, por revelar, que a máquina  carregava. Na memória, no coração. O sal que levava na pele, nos fios de cabelo, na roupa.  O sabor dos lábios, salgado, amargo. Por vezes, a brisa transportava um fresco odor a  peixe e algas. Gaivotas voavam em círculos, anunciando-se. Dando o dia por terminado.  Ao largo, barcos de pesca ondulavam ao sabor da corrente. Preparados para a noite que  não tardava.

Naquele fim de tarde, pertencia ao mar. Todo o oceano, que se estendia no  horizonte, era a sua casa. O areal era a sua casa. A falésia, que a rodeava, era a sua casa.  Com os últimos raios de sol, reuniu os pertences e abandonou a areia, já fria. Embora o  coração pulsasse quente. Embora parte dele já não abandonasse a areia.

Nos anos seguintes, o regresso à preciosa casa seria na memória. E guardava a  memória como se fosse a chave da sua própria existência. Como se o conjunto da areia,  da água, espuma e sol a alimentassem. E a fotografia, em comparação, perdia importância.  Voltaria, era a única certeza. Aquele fim de tarde seria transmitido às gerações vindouras.  A água fria e salgada na pele. O desvanecer da espuma branca, límpida. O rosto salgado.  Os cabelos eriçados, húmidos, embalando com a brisa. Os cabelos crespos na viagem de  regresso. O odor a peixe e algas. Ensiná-los-ia a identificá-las. Não apenas as que enrolam  o arroz do sushi que conhecem melhor que a palma das mãos. Cortar o pé numa concha  quebrada. E o cansaço acumulado nos músculos.

Os anos passaram. Decidiu o regresso, o tão aguardado regresso, e foi. Sozinha,  nas veias a jovialidade de antigamente. O entusiasmo da viagem, do destino, disfarçava e  camuflava o cansaço da condução. A visão perturbada sabia de cor cada curva, cada  mudança de sentido. O coração palpitava, ansioso. Como seria regressar? Talvez o mais  sensato seria ter ficado em casa. Deixar a ilusão e o sonho de lado. Não lhes dar crédito.  Abafar as vozes. E se o coração não resistisse ao choque? De jovem não tinha nada. Os  anos passados desde a última vez… A vida mudou.

Da estrada vê o mar que se estende ao longe. Anseia pela chegada. Estacionar nos  novos lugares definidos, que dizem existir, onde anteriormente a terra batida servia a  ocasião. E encarar, pela última vez que fosse, a bela extensão de mar após a longa  extensão de areal. A máquina fotográfica ansiava, no banco do pendura, pela captura da  imagem perfeita. Ansiava substituir a imagem antiga, que permanecia na memória.  Colocá-las-ia lado a lado, em exposição, de frente para a vida.

Ao chegar, as mãos tremem-lhe. Agarra a máquina com toda a sua força. Sai do  automóvel e, aos primeiros passos, a adrenalina preenche-a, dando-lhe energia para  continuar perante a estupefação. A bela paisagem dá lugar a desalento. A um aperto no  coração. Um soco no estomago. Uma lágrima escorre-lhe, involuntariamente, pelo rosto.  Inúmeras se lhe juntam sem reparar. A máquina encontra-se suspensa pelo cordão que a  prende ao pescoço. As pernas cedem. Seria melhor ter ficado por casa. Pela sua real casa.  E a casa que ali encontrara anos antes, preservada na memória, deveria ter ficado intacta.

O regresso não era à preciosidade que recordava. A areia não seria mais simples  areia. As embalagens depositadas. Os sacos que boiavam. As gaivotas transfiguradas. O  som das ondas, a rebentar junto aos pés, carregado de plásticos. O cheiro a peixe e algas  trocado pelo forte odor a combustível e óleos. A pele oleosa após ida a banhos. A  vermelhidão na pele.

Não hesita em regressar a casa. Ao lar onde se acomoda e que a acolhe. As  lágrimas que insistem em escorrer e em cada lágrima escorre uma memória preservada.  A fotografia antiga será suficiente. E a cada lágrima recordará o que foi e já não será. Por  entre lágrimas, fecha o álbum. Fecha os olhos e sente a brisa que dança nos seus cabelos  e lhe afaga o rosto. Respira fundo e sente a brisa fresca e límpida entrar nos pulmões.

Ana Serra Lourenço

Jurista e Escritora, autora do livro “A noite onde me deixaste

Imagem Por, Paul Cézanne, “The Large Bathers [Les Grandes Baigneuses]” (Philadelphia Museum of Art)

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