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Quando Alice pôs a mão no coração, não o sentiu bater. Então era assim que se morria, o batimento que escapa, a respiração suspensa, o corpo em abandono de funções vitais. Era assim que se sentia quem morre, quem desaparece lentamente para não regressar.

Duas horas antes, entrara no carro. As mãos tremiam-lhe, não conseguia pôr a chave na ignição. Respirou fundo. Tentou usar as técnicas que aprendera na meditação, inspirar pelo nariz, expirar lentamente pela boca. Não funcionou. Sentiu o ataque de pânico a chegar, a vista a ficar turva, as mãos húmidas do suor gelado, a respiração ofegante. Estava de novo a caminho de um quarto muito escuro, de onde demoraria a sair.

Fechou os olhos com força. Voltou ao momento em que o telefone tocou. Não conhecia o número, não costumava atender números desconhecidos, mas o seu dedo voou para a tecla verde antes que pudesse travar o gesto. Do outro lado, uma voz tremida, a entrecortar palavras com soluços, Alice?, é a mãe da Sara, não é?, olhe, tem de vir depressa… a Sara não está bem.

Sara. Sara. Dezasseis anos e tanto existencialismo. Sara e a raiva. Sara e a mágoa. Sara e a manipulação. Sara e a dor de uma vida inteira. Alice culpava-se do que não tinha culpa. A família no chão, desfeita como um castelo de cartas, o ex-marido a monte, hoje com esta, amanhã com outra qualquer, na quinta-feira sabe Deus com quem. Sara a chorar agarrada às pernas do pai, Fica, papá, fica comigo e com a mãe, o pai a sair de rompante, nem um adeus dito à filha. E Alice caída no chão do corredor, as lágrimas em cascata pelo rosto, o nariz duplicado e nenhuma esperança de alguma vez viver em paz.

Dois dias depois de o ex-marido se ter ido embora, Alice deu com Sara no parapeito da janela, as pernas do lado de fora, a baloiçar como se se preparasse para saltar. Prendeu um grito na garganta, com medo que o susto atirasse a filha borda fora. Chegou-se a ela devagarinho, abraçou-a por trás. Sara deixou-se estar, não se virou para a mãe, fechou os olhos e disse A culpa é tua, tu é que o fizeste ir embora. Alice sabia que não era verdade, mas as mentiras na boca dos filhos ganham uma força absurda e quase acreditou no que Sara acabara de dizer.

Entrara no carro à pressa, a visão já turva das lágrimas que afloravam, a destruição de Sara uma promessa em vias de se cumprir. Conduziu sem ver nada, estrada, carros, pessoas, segundos que lhe pareceram horas. Entrou em casa empurrando com força o corpo desconhecido que tentava barrar-lhe a passagem, Lamento muito, Alice, lamento. E Alice a entrar no quarto de Sara, Sara tombada ao lado da cama, os pulsos expostos e cobertos de sangue, o sangue em que Alice se ajoelhara à procura da filha. Sara morta. Sara morta. E Alice a morrer também, o grito primitivo a rasgar o espaço, o antes e depois separado por aquele grito e Alice a morrer também, o coração a desligar, a mão pousada no coração e Alice sem o sentir bater.

Por: Lénia Rufino (Escritora e Autora do livro, “O Lugar das Árvores Tristes“)

Imagem Por, Jacques-Louis David, “The Death of Marat [La Mort de Marat or Marat Assassiné]” (Royal Museum of Fine Arts of Belgium)

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