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O aviso veio, em primeiro lugar, através do som, e rapidamente se tornou aquela mistura doce do som e movimento da água, e a sensação de merda de ser o teu pé. Chovia a cântaros e era difícil distinguir os buracos mais profundos na calçada.

O som do tráfico era abafado pelas gotas bojudas, e Miguel tirou os fones dos ouvidos só para a ouvir. A mistura caótica da chuva e buzinas era agradável.

Tirou o ténis da poça como se nada fosse, todo ele era como se nada fosse. Bateu, apenas, três vezes com força no chão molhado para tirar o líquido que se prestasse a sair.

Avançou para o a passadeira era capaz de jurar que aquele sinal vermelho era o mais vaidoso de toda a avenida, mostrando-se, cinzento, lento e autoritário. Algum dia contaria o tempo de todos os semáforos da rua e provaria a sua teoria.

Ao seu lado estava um rapaz, cinzento também, mas muito claro, não tinha uma tonalidade escura em lado algum, até o cabelo parecia branco.

– Adoro o teu estilo. – o rapaz virou-se para ele e sorriu, talvez tivesse reparado que Miguel o fixava. Gritou, para se fazer ouvir através do som amalgamado.

– Andas na minha escola, és um ano à frente. Sou o David. E estendeu-lhe o punho cor de pele cinza clara.

Miguel não era de amigos, mas deu por si a estender o braço e a dar-lhe um encontrão de punho certeiro.

– O sinal mudou, bora. – o rapaz gostava de gritar.

Miguel olhou em frente e seguiram lado a lado, pela passadeira, ruas contorcidas e escorregadias, até chegarem ao portão da escola.

– Adeus Miguel. David sabia o nome dele, talvez todos da escola soubessem. O rapaz que não via as cores. Que não falasse, também, devia ser memorável para os outros miúdos em constante interação social.

Passou o dia nas aulas como sempre, concentrado na matéria, comia a sandes num canto da escola, onde também se recolhia para ler e ouvir música, e voltou para casa.

O apartamento estava claro, com as luzes modernas a projetarem uniformemente uma clareza de dia, falsa, à sala larga. O pai esperava-o sentado no sofá, de frente

para a porta da entrada, com um cálice de qualquer coisa na mão, pernas cruzadas, e a outra mão apoiada num molho de papéis desorganizados dispostos também no sofá.

– Posso falar contigo, filho? – O tom era de pedido.

Miguel ignorou a vontade de se ir embora e enfiar-se no quarto, apesar de não gostar da cara infeliz do pai, decidiu ouvir o que vinha dali.

Sentou-se na cadeira em frente ao pai e começou a desatar o ténis ali mesmo à frente dele, o pai esperou, Miguel tirou a meia preta que apesar de um dia a ser aquecida pelo seu pé, espremida ainda deixou cair gotas.

– Estive a ler o relatório da escola, é assustador Miguel. Falei também com a tua antiga psicóloga. Como sabes sempre te dei todo o espaço que achei que precisavas, por isso nunca tinha falado com ela, mas, foi esclarecedor…

– As minhas notas são as mais altas da escola.

– Eu sei, e isso sempre me deixou descansado. – aliviado, queres tu dizer, pensou Miguel, assim podes continuar a “dar-me espaço”.

Desde que a tua mãe morreu… – as ondas de choque invadiram inadvertidamente o corpo de Miguel, o cérebro parou-se-lhe. A mãe. Como se atrevia a falar-lhe agora da mãe? Bêbado proibira-o, nos seus 9 anos, de chorar e de falar nela, como se atrevia?

Miguel, levantou-se, deixou as coisas no chão, dirigiu-se ao quarto, não ia chorar, não ia berrar, não lhe daria qualquer satisfação desse género, estava sozinho há quase dez anos, não era agora que iria ouvir lições.

Destrancou o quarto, e fechou a porta com um estrondo atrás de si. Depois chorou, escorregou pela parede até ficar sentado no chão e deixou as lágrimas e os soluços de dor saírem. Esticou a mão, tocou no armário que sabia que era branco porque a mãe lho dissera.

– Não faz mal não veres as cores, Miguel. Só te torna especial. Os guerreiros daltónicos de antigamente conseguiam ver para além da camuflagem colorida dos animais, e captavam-lhes assim o movimento mais ténue. Viam mais do que os outros, entendes? Eram os melhores caçadores!

Olhou para a cama, era a mesma de sempre, poucas coisas no seu quarto não o eram desde que a mãe se fora. Ela costumava colocar-lhe as roupas dispostas na cama, para ele não se enganar e vestir cinzas que não se davam. Começou como uma brincadeira, um jogo, mas cedo perceberam que Miguel era totalmente cego às cores. Depois tornou-se normal, brincavam com a sua inaptidão. Até o pai ria-se, às vezes, quando Miguel, à mesa do jantar, dizia as cores decoradas dos vegetais e enganava-se.

Mas depois, depois do acidente da mãe, tentou, tentou recordar-se das combinações de roupa que ela dispunha na cama. Falhava sempre. Na escola gozavam-no, batiam-lhe. O pai, ora chorava, bêbado ora dormia alheado ao filho a chegar a casa com roupa rasgado ou nódoas negras. Miguel comia o que era deixado pela empregada, tomava banho, livrando-se da sujidade da terra e do que lhe atiravam, e depois via-se ao espelho, distorcido, de tristeza e de pancada .

A psicóloga não ajudou, Miguel lembrava-se pouco do que acontecia nas sessões, mas era sobre o luto, acima de tudo. Finalmente, Miguel gritara-lhe.

– A minha mãe está morta, não há luto percebes? Estou morto com ela. – disse ao pai que não queria mais ir, e foi o fim daquela tortura.

Decidira estar morto a partir, daí, escolhera o negro, pediu ao pai, só queria roupas pretas, tudo, meias sapatos, t-shirts, camisolas, calças. Tudo. O pai disse que sim e cumpriu. Miguel pegou nas roupas do armário e pô-las num monte à porta do quarto, do lado de fora, no dia seguinte a empregada tinha-as arrumado novamente, Miguel repetiu e ritual e desta vez deixou um papel com letras grandes a dizer “lixo”. Não soube como o pai e a empregada se entenderam, mas quando chegou da escola tinha o armário e gavetas vazias. Sentiu prazer, finalmente, a mudança que planeava tinha início.

Mas não fora o suficiente, as roupas vinham com logos e pormenores cinzas, comprou canetas permanentes negras e gastou-as rapidamente.

Os cinzas desapareciam e transformavam-se na cor que era dele, na cor final de todas as cores, na cor segura.

Parou de ser atacado na escola, o negro provocava medo nos outros, descobriu , provocava vontade de distância, fora bom. O pai continuava distante, bêbado e a dormir, Miguel achou que ele nem reparara no seu plano em movimento.

O pai bateu-lhe à porta e interrompeu-lhe a reminiscência.

– Podemos falar. – não esperou pela resposta, abriu a porta e ficou parado, à espera, tinha um resquício de curiosidade a surgir-lhe no peito. Seria agora que ele o ia ver? Abanou a cabeça, claro que não.

O pai deu dois passos inseguros em frente e entrou. Ele não devia entrar no seu quarto há anos, a cor assustou-o de certeza, como aos miúdos da escola. Os móveis eram de uma criança de nove anos brancos e cinzas, pequenos, mas as paredes e cortinados negros deviam tornar o quarto como o caixão da mãe, se visto a partir de dentro. Mas a mãe já não lhe emprestava os olhos, porque já não via.

Miguel esfregou os olhos ainda húmidos. O pai sentou-se no chão, ao lado de Miguel que se manteve de pé a observá-lo.

– Explica-me isto. – o tom era autoritário.

Miguel já era, há muito tempo, maior do que o pai, mas sentiu-se exposto e pequeno, com nove anos novamente, como se tivesse infringido uma lei que não existia. Mas, quem era o pai para, agora, interferir na sua vida?

– Isto sou eu. Vai-te embora, nunca precisei de ti e não é agora que me apetece falar com um fantasma.

O pai quedou-se apenas segundos, levantou-se e dirigiu-se à porta – estou a ver uma terapeuta. Talvez algum dia possamos ir juntos. – fechou a porta atrás de si quando saiu.

No dia seguinte Miguel ainda se sentia abalado com a interação da noite passada, dormira mal. Sentia que algo mudava no seu mundo perfeito e deliciosamente estagnado, e não sabia o quê.

– Olá Miguel.

Despertou, os carros corriam, assustadoramente velozes, à sua frente, estava encostado ao semáforo vaidoso e o mesmo rapaz cinza claro estava ao seu lado.

– Que cores usas? – apesar das nuvens negras no céu, hoje não chovia, pelo que pode falar num tom monocórdico, baixo.

O rapaz pareceu confuso, sorriu embaraçado. – Cores, tipo, que gosto?

– Não, que cores usas agora, e qual é a cor do teu cabelo?

– Estás a gozar comigo?

– Não, só quero mesmo saber. – o sinal mudou para a cor cinzenta de baixo que representaria um verde tímido e rápido.

Eles mantiveram-se no sítio, dois mundos opostos, com linguagens diferente.

– Não vês? – David lançou um riso alto, irónico.

– Eu não vejo cores, sou daltónico. – Miguel achou por bem, a este ponto, esclarecer-se. Já que todos o achavam maluco.

– Ah… Tipo, nenhumas? – este rapaz não ouvira falar dele?

– Nada, vejo preto e cinzas, o branco confunde-me, portanto, considero-o cinza claro. Mas toda a gente da escola sabe disto que te estou a contar…

– Ai é? Eu não sou muito de conversas de recreio… Gosto mais de jogar à bola. Bem, mas isso explica… pensei mesmo que estavas a gozar comigo.

– Porquê? Só quero saber as tuas cores, há muito tempo que não me interessam, mas és diferente, és muito claro. – o rapaz riu-se novamente, tinha um riso fácil, pelos vistos, alegre.

Miguel associou a conversa a uma tentativa de comunicação entre a lua e o sol.

– Eu sou albino. – soltou outro riso, um que mostrava entender a ironia da interação. Era inteligente, como Miguel. Mas ria-se da sua doença, enquanto Miguel fechava-se no caixão da mãe.

– Sabes o que é?

– Sei, pele e cabelo claro, olhos vermelhos, não gostas de luz.

– Gosto, não me posso expor a ela, como um vampiro, e se estiver claro, um dia com sol, tenho de usar óculos próprios e um chapéu.

– Tens mesmo olhos vermelhos?

– São muito claros e translúcidos, parecem vermelhos porque se veem os vasos sanguíneos por trás. Tenho o cabelo louro, quase branco.

Miguel apeteceu-lhe tocar-lhe, um rapaz com cores, no cabelo desgovernado, apeteceu-lhe observar mais de perto os olhos de David, se calhar conseguia perceber melhor, num ser vivo, a cor vermelha.

– Posso mostrar-te uma coisa?

David ficou a olhá-lo. Estava na hora de entrada. Mas acenou.

Miguel virou-se esperando que este o seguisse, o outro começou a falar da história dele, era hereditário, depois comentou o engraçado que era serem ambos especiais.

Chegados ao apartamento de Miguel seguiram para o quarto dele. Quando abriu a sua porta fechada à chave, observou o rapaz. A reação foi dentro do esperado, espanto. David levantou as sobrancelhas e lançou-se um comprido uou.

– É como tu, o quarto. Gostas mesmo de preto.

Miguel não sabe porquê, provavelmente porque não tinha ninguém com quem falar, talvez pelo pai se ter tentado aproximar dele ontem, contou-lhe tudo, tudo o que passara, a mãe, a escola, o pai, as cores, tudo do que se lembrou. O rapaz não pareceu desconfortável pelo despejar de palavras, pelo contrário, ouvia-o, pegando no ocasional objeto negro ou passando a mão pela parede.

Só quando terminou é que Miguel reparou nas lágrimas que lhe molharam a camisola. Olhou para David, a verdade é que esperava alguma coisa, não sabia o quê, qualquer coisa.

– Amarelas.

– O quê?

– Há bocado perguntaste-me pelas minhas cores, as minhas calças são amarelas, a camisola azul esverdeada, mmm, os sapatos são roxos.

Miguel ficou chocado.

– E isso fica bem? Essa mistura de amarelo, azul, roxo? Não são cores muito diferentes? Uma combinação que fica feia?

– Eu gosto. – encolheu os ombros e ficou a olhar os pés, que mexia, como que a admirar o roxo escuro sujo que os compunha.

– Temos histórias muito diferentes. – o estranho rapaz acabou por dizer. – a tua mãe parece espetacular, a minha é normal, cozinha bem, obriga-me a pôr a proteção solar e mais nada de especial. O meu pai é fixe. Passeamos em florestas e matos nos dias mais escuros, diz que não tenho de ficar enfiado em casa, lá porque sou branco da cabeça aos pés. – libertou aquele riso novamente.

– Posso ajudar-te a escolher cores para o quarto, este, assim, mete medo.

E era, era o medo que sentia, protegia-se das cores com a cor que lhe dava segurança, mas que, ao mesmo tempo mostrava o medo. Mostrava acima de tudo a morte onde se deixara congelar.

– Gostas mesmo da maneira que me visto?

– Claro, é brutal, tipo estou-me a cagar. – engraçado como a felicidade deste rapaz o fazia vê-lo daquele modo, destemido e livre.

– Gosto de trocas. – disse, David. – És bom aluno, eu não, mas gostava de ser, dás-me explicações e ajudo-te com as cores do quarto.

Miguel nem tinha concordado com a sugestão anterior de pintar o quarto, mas deu por si a dizer que sim.

– Boa, vamos para as aulas, os meus pais matam-me se tiver mais faltas.

Levantaram-se e saíram, mas Miguel voltou atrás, deitou os marcadores permanentes pretos no balde do lixo. Com ou sem este rapaz, ia tentar largar a morte.

Beijou a foto, que tinha na mesa-de-cabeceira, da mãe, agradeceu-lhe os olhos que lhe emprestara, e deixou a porta destrancada.

Claudia Machado

Escritora e Autora da obra, “O Acordo Vol. I

Imagem Por, Anthony van Dyck, “Self-Portrait” (Metropolitan Museum of Art)

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