O céu de ferro pesava sobre a cabeça de Ângela. Toda a dor parecia ter-se condensado e abatia se sobre ela. O aperto no peito paralisava-a e nem chorar conseguia. Já o tinha feito. Agora, estava apática a olhar para o ecrã da televisão apagado.
O berço, despido do seu bebé, aumentava-lhe ainda mais o vazio. Não sabia se o pior havia passado, mas pressentia que ainda estava por vir.
O bebé nascera de parto natural, sem grandes complicações, com 3,080 kg. Um belo rapaz, maior que a irmã, mas menor que o irmão que nascera com 4,050 kg, e com o cordão umbilical enrolado ao pescoço.
O mais difícil foram os momentos que se seguiram. A confirmação do que se temia desde o início, uma hipoglicemia, e a incapacidade de agarrar a mama e puxar o leite. Os músculos hipotónicos não lhe facilitavam a vida.
O aviso de uma suposta cirurgia ao coração esfumou-se, no entanto, o pequeno André não se livrou de uma incubadora. Depois do parto, apenas reapareceu uma vez, já limpo para se despedir dos pais. Foi para o serviço de neonatologia.
À hipoglicemia, e à incapacidade de se alimentar da mãe, juntou-se a falta de oxigénio. Estava todo ligado e entubado. Dava dó olhar para um ser tão pequeno, e aparentemente tão perfeito, numa condição daquelas. Fora a quantidade de vezes que era picado para inúmeras análises.
Ao fim de dez dias a caminhar diariamente para o hospital, Ângela pôde, finalmente, trazer o seu bebé para casa. Teve alta, já pegava na mama e, felizmente, não necessitou de nenhuma cirurgia. Lindo e sedutor, como as enfermeiras o apelidavam, foi mimado em casa, por todos, como merecia.
Os olhares e cochichos sobre o André foram-se adensando a medida que os anos cresceram. Ter trissomia 21 era ainda raro e alvo de reparo.
Apesar de toda a “publicidade” sobre inclusão, respeito e aceitação da diferença, o casal sentia na pele que a prática ficava aquém da teoria.
Ângela e o marido não davam muita importância aos olhares gulosos e analíticos, mas os outros dois filhos sim. Não gostavam que olhassem para o André com estranheza ou comiseração.
O que todos queriam era não serem discriminados. Afinal, cada família tem as suas diferenças e características únicas. E que brilho singular aquele miúdo tinha trazido para todos!
André era uma criança feliz, meiga, amorosa, atenciosa e prestativa. Compensava as suas dificuldades com amor.
Com uma perspicácia e simplicidade únicas, adorava brincar com outras crianças. Por vezes, na sua inocência, perguntavam à mãe que língua é que ele falava. Pensavam que poderia ser inglês, afinal, elas ainda não sabiam aquela linguagem. Ele sentia-se nas nuvens. Brincava às corridas, às escondidas, ao comboio, à pedra, papel ou tesoura… corria, saltava, ria, e comandava os outros miúdos, que ficavam felizes em brincar e em ter um líder estrangeiro!
Antes de ficar grávida, Ângela nunca tinha pensado ter uma criança chamada especial, sendo que todas o são para os seus pais. Depois de o viver, sentiu-se abençoada. Tinha programado não “viajar” mais, mas o “bilhete” veio escondido dentro da mala, na última viagem que tinham feito. E ainda bem que assim foi! Ângela sentia-se, também ela, especial. Afinal, nem todas as famílias tinham o privilégio de ter um membro sempre disposto a dar beijos, abraços e carinho, apenas a troco de mais beijos, abraços e carinho!
Imagem Por, Caravaggio, “Amor Vincet Omnia” (Gemäldegalerie)
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