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Esta história começa com gritos. Os gritos de uma das povoações, os quais se escutavam por toda a parte, com cada pessoa a correr para o abrigo das suas casa, batendo portas e janelas. Crianças choravam, aterrorizadas pela presença do homem que comandava o fogo. Ali, todos o temiam.

Cada pessoa das pacatas aldeias em volta, conhecia o feiticeiro que aterrorizava aquelas terras há anos. Porém, a grande maioria recusava-se a sair, a abandonar as suas casas, o sustento do campo e o lugar onde foram criados.

Ninguém sabia o seu verdadeiro nome. Todo o que se conhecia sobre ele era que aparecera, um dia, repentinamente, e começara a queimar campos e casas, exigindo a entrega da pouca magia existente naquelas aldeias. Esta, com o tempo, começou a ser sugada dos campos, mesmo durante os mais rigorosos invernos, iluminando a grande torre em chamas, a qual levava a magia para o interior do castelo.

Ninguém protestava. Ninguém se opunha. Há muito que os aldeões deixaram de lutar contra a tirania do feiticeiro. Com o tempo, alguns jovens começaram a partir, procurando uma vida melhor e longe daquele terror, temendo os dias de fúria do feiticeiro.

Todos se perguntavam quando o terror teria fim. Havia quem sussurrasse uma solução. Era antiga e ninguém tinha a certeza que funcionaria, pois não passava de um boato, delírios de uma bruxa velha, diziam.

Para pôr fim ao seu reinado, o feiticeiro teria de amar alguém e receber o mesmo amor em troca. No entanto, quem achava tal solução era questionada por muitos, não somente pelo seu efeito, mas devido à principal questão: quem aprenderia a amar alguém cujas chamas eram tão ardentes, mas o coração tão frio?

*

A primavera já ia a meio e as chuvas da época não paravam de chegar, alagando os campos e destruindo plantações. Os aldeões amaldiçoavam o feiticeiro por haver destruído tantas outras, as quais poderiam render as perdidas. A maioria da população mantinha-se dentro de casa, fechando o comércio e evitando que a gripe se espalhasse.

Nas ruas escuras e lamacentas daquela em específico, uma jovem de capa castanha, subia toda a aldeia, batendo às portas e pedindo abrigo, mas ninguém era capaz de a auxiliar, mesmo que esta apenas pedisse abrigo.

Quem poderia ter tal ousadia?

Ninguém lhe abria a porta, temendo os perigos noturnos. Para além do feiticeiro, os ladrões estavam a aparecer com bastante frequência ultimamente, entre eles, mulheres. Mas a jovem não era uma ladra e sim uma viajante que perdera o cavalo quando ambos se assustaram com a trovada.

Uma jovem desconhecida.

Sem alternativa, não lhe restou senão correr em direção à torre de flamas, com as fortes labaredas a bailar de baixo daquela tempestade, como se a chamasse para o seu calor, desconhecendo correr para o inferno.

Quem poderia ser?

Os aldeões viram-na subir a colina em direção ao castelo do feiticeiro, levando a que vários se benzessem e rezassem pela sua alma, pois o corpo estaria condenado às abominações terrenas mal colocasse um pé naquele castelo.

*

Contrariamente ao que todos pensavam, não era louca. Entendia perfeitamente que corria na direção de algo perigoso. Sentia-o. Se a torre enfeitiçada não lhe era suficiente, os arrepio que aquele castelo lhe provocava intensificou a sua certeza. Porém, a necessidade de abrigo, comida e de evitar uma grande gripe, eram superiores a qualquer temor que pudesse ter. Se aquele local fosse o seu único porto seguro, seria eternamente agradecida a quem o governava.

O portão negro estava aberto e a jovem reparou como a chuva e trovoada pareciam piorar o aspeto dos ferozes animais espalhados pelo longo e escuro jardim, desprovido de vida e beleza. Continuou a correr, vendo a porta de madeira escura diante de si. Subiu as poucas escadas e balançou contra a porta o único batente, o mesmo que se encontrava na boca de um monstro de dentes aguçados e língua em chamas.

Nada.

Bateu novamente.

Ninguém respondeu.

— Olá? — Bateu com o punho. Nada. — Está aí alguém?

Determinada, tentou empurrar a porta sem batente e esta não ofereceu qualquer resistência. Começou a empurrá-la com a sua pouca força, mas apenas o suficiente para o corpo esguio passar e fechar novamente a porta, deixando a tempestade lá fora, juntamente com os relâmpagos.

O interior era enorme, com uma entrada de teto tão alto que a jovem mal conseguia ver o seu fim. A meio, pendia um candelabro de cristal, com todas as velas acesas, limpo e polido, contrariamente ao que imaginara. Todo o espaço estava impecável. Claramente a falta de mobiliário não permitia a acumulação de poeiras, mas o chão castanho estava impecavelmente polido, levando a umas escadas brancas que se dividiam em duas no topo.

Apesar do ar sombrio, não a assustava. Mesmo com os pequenos insetos que pensou estarem a rastejar pelas paredes, não se importaria com a sua presença. O cansaço acabaria por vencer e a jovem somente necessitava de um local para dormir.

As longas escadas de pedra fria, eram cobertas por um tapete escarlate, quase tão intenso como os fios de cabelo da jovem, os quais a própria destapou, retirando o capuz de cima e a capa molada dos ombros. Atrás de si, deixava um rasto de água da chuva, a qual a gelava agora que parara de correr.

Preparava-se para subir a longa escadaria, agarrando-se firmemente ao corrimão de madeira-escura, equivalente à cor do chão. Porém, antes de dar um passo, uma figura sombria apareceu no cimo das escadas, iluminada pela tempestade na rua, notável através da janela atrás da alta figura.

A jovem não o ouvira chegar. Deu um passo para trás, surpreendida.

— É preciso coragem para entrar no meu castelo. — Somente os olhos negros pareciam brilhar na escuridão.

— Eu… Eu lamento pela intromissão…

— Sai.

A jovem recou novamente quando ia tentar subir uma vez mais, empurrada pela forte voz.

— Mas eu preciso…

— Sai! — gritou o homem.

Os cristais tilintaram e a jovem mulher temeu que o candelabro caísse e a ferisse seriamente.

No topo das escadas, passos ecoaram e ela viu o homem começar a afastar-se, deixando-a apenas com aquela brutal ordem, exigindo que partisse para o meio da tormenta no exterior. Ela percebeu que o seu tom não era de brincadeira, evidenciado também pelo seu semblante, descoberto devido às velas embutidas na parede, pelas quais passara rapidamente, revelando um rosto jovem e cabelos loiros.

Com toda a sua coragem, a mulher voltou-se para ele e subiu a primeira escada, determinada.

— Não! — Levantou o queixo, demonstrando a sua seriedade, mesmo à luz das poucas velas que adornavam o antar superior.

— Como?

— Não irei.

Estava decidida a ficar e nada a demoveria, nem mesmo o seu arrogante anfitrião.

— Caso não tenhas entendido, não foi um aviso. Foi uma ordem.

— Pois, mas eu não obedeço ordens de qualquer um.

O homem voltou-se para a jovem e reparou, pela primeira vez, nos seus grandes e brilhantes olhos verdes. Por que pareciam não temê-lo?

— Sabes ao menos que te posso fazer? A tua estupida coragem não te valerá de muito.

— Prefiro arriscar. — Subiu mais duas escadas e voltou a encará-lo, vendo-o, subtilmente, recuar para a escuridão.

— Sabes ao menos quem sou?

O feiticeiro nunca a vira na aldeia mais próxima ou em qualquer outras das mais distantes.

— Não sei quem é o senhor, apenas que deve ser o proprietário deste castelo. Por isso mesmo, poderia ser um bom anfitrião e deixar-me passar a noite. — Apontou para a janela no topo das escadas. — Está uma tempestade lá fora e este foi o único local onde encontrei abrigo. Por isso, gostaria de ficar a pernoitar, nem que fosse junto das escadas.

— Não — respondeu rapidamente, sem demonstrar qualquer hesitação.

— Porquê?! O senhor não podia ter um pouco de piedade?

— Não!

Repentinamente, intensas chamas surgiram ao redor do homem, iluminando a sua roupa negra e tornando os olhos cor de fogo, enquanto as labaredas percorrias os braços e pernas. O susto da jovem, fê-la cambalear para trás e tropeçar nas escadas, deixando-se cair no chão gelado, largando a sua capa e alforge.

A ordem do feiticeiro ecoara por todo o castelo, fazendo-o estremecer. As paredes começaram a ganhar rachaduras. Nas janelas apareciam pequenos fios lascados, o chão começava a partir de baixo da jovem, como se tentasse engoli-la. E as escadas ameaçavam separar-se. Era como se todo o castelo, de repente, quisesse desmoronar com o peso daquela fúria. A jovem gritou e tapou a cabeça, temendo que o teto desmoronasse sobre ela, ao ver a gravilha espalhar-se ao seu redor.

— Pare! Pare, por favor! — gritou, assustada.

Não podia querer que estivesse desposto a destruir o seu lar por ela se recusar a partir.

Mas, de repente, tudo parou. Não se ouviu um único som. Nada caia ou se estilhaçava e quando a jovem levantou a cabeça, tudo estava no lugar, como se cada fratura não tivesse passado de uma mera ilusão.

Ergueu a cabeça para as escadas, vendo-o ainda no seu topo, com as chamas nas suas roupas a brilhar com cada vez menos intensidade até desaparecem, deixando as roupas intactas.

O feiticeiro começou a tossir, como se o fumo deixado pelas chamas o tivesse a impedir de respirar, espantando a mulher quando viu fumo negro a sair da sua boca, levando-o a ajoelhar-se.

A última coisa que o feiticeiro escutou, foram passos apressados e uma voz distantes, seguindo-se de uma sensação quente nos seus braços nus, recebendo um calor doce e acolher.

Antes de fechar os olhos, apercebeu-se de que não eram as suas chamas.

Helena S. Moreira

Escritora e autora do livro “Coração de Diamante” e Novela “Feiticeiro das Chamas: Capitulo 1, 2, 3 e 4

Imagem Por, Francisco de Goya, “Witches Flight” (Museo del Prado)

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