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Não sabia há quanto tempo estaria a encarar as pilhas de livros. As três já iam altas e ainda não conseguira encontrar o que necessitava. Parecia que não havia uma solução para o seu problema. Nunca houvera. Por muito que procurasse, o feiticeiro nunca encontraria outra que o deixasse livre daquela vida e da própria morte.

A falta de concentração também não ajudava e isso era culpa daquela mulher. Não precisava de a ver para sentir a sua presença em qualquer canto do castelo, como se as paredes que lhe tentassem infernizar a vida — ainda mais. E pior de tudo, ela não pretendia sair tão cedo.

Há quantos dias estava ali? Três? Já faria uma semana? Talvez dez dias.

Escutava-a sempre nos corredores de manhã, cedo, escutando-a assobiar a mesma melodia que ouvira no primeiro dia. Atarefava-se na cozinha, preparando refeições que ele mal tocara, alimentando-se somente quando necessário. E enquanto estava na biblioteca, escutava-a limpar cada canto do castelo, como se tal fosse necessário. Já lho dissera, mas a teimosia daquela mulher era inigualável. Mesmo sem criados, todos os espaços da aquela grande casa estavam impecáveis graças à sua magia.

Ele vivia só e não precisava de ninguém.

Cada vez que o feiticeiro a via sem fazer nada mais do que tentar acender a lareira, ela cumprimentava-o com um sorriso e agradecia-lhe ao ver o fogo bailar sob a madeira. Ele começava a interrogar-se se ela não o faria de forma propositada. Pelo meio, tentava conversar com ele, mas o feiticeiro acabava por evitar qualquer diálogo com Lyla, afastando-se e refugiando-se nos seus livros.

E foi enquanto folheava a última página de um, que se levantou da velha secretária da biblioteca e bateu com as mãos em cima do tampo. A raiva começara a criar chamas que devoraram o livro, criando manchas negras na madeira.

Afastou-se e caminhou até à janela mais próxima, afastando os pesados cortinados vermelhos, deixando mais luz entrar no espaço e fitando o seu reflexo desmazelado. As olheiras não eram tão profundas quanto imaginava, mas a camisa brande estava desalinhada e o seu cabelo não estava melhor. Soltou-o para o ajeitar antes de prestar atenção ao jardim nas traseiras do castelo.

Para além da relva verdejante, as únicas plantas ali presentes eram os girassóis, existentes mesmo antes de ocupar aquele lugar e os quais, a sua magia cuidava como fazia com o todo o castelo. Inicialmente, não notara que no meio delas estava a sua convidada indesejada. Viu-a, quase do topo do castelo, sentar-se no meio do campo amarelado, sem danificar qualquer uma das plantas.

Apanhou-se a observá-la com atenção, notando como ela se destacava no meio da beleza primaveril, da simplicidade daquelas flores que realçavam essas mesmas características em Lyla. Daria um belo quadro a ser pintado pelo melhor dos artistas. Nem mesmo as roupas masculinas que trajava danificavam o cenário.

As roupas que trouxera naquele dia, estavam completamente estragadas. Apanhara a costurá-las na sala de estar, sentada junto à lareira, mas percebeu de imediato a sua falta de jeito devido aos vários queixumes e ao resultado final que lhe tentou mostrar, onde as bainhas ficaram desalinhadas.

Trouxera pouco com ela, além de alguma comida e pertences pessoais, mas nada de dinheiro com o qual pudesse comprar roupas adequadas na aldeia onde passara antes de chegar ao castelo e onde supostamente perderia vida. Se os aldeões a vissem descer dali, definitivamente fugiriam mal a vissem.

A própria, todas as noites — limpas como a anterior — observava o feiticeiro partir. Olhava para ela desde o jardim da frente, encarando-a pela janela no andar superior, onde sempre ficava, para no corredor.

Escutava os gritos, sim. Todas as vezes que ele ia para lá, o sons de suplica e medo passavam pelas grossas paredes de pedra e ela não conseguia evitar olhar para as labaredas que invadiam os campos. Jamais se atreveu a perguntar porque o fazia, pois sabia que ele nunca lhe diria nada a respeito do seu comportamento e, por muito que tentasse, não conseguia entender o porquê.

Ele parecia sempre tão cansado quando retornava, tão abalado. Queria alegrá-lo, tentando conversar ou dizendo coisas tontas, mas recebia somente um olhar vago e vazio, apercebendo-se rapidamente como as chamas daquela torre ganhavam força.

Podia perfeitamente deixar aquele lugar, aquele homem… Então, por que não o fazia? Estaria enfeitiçada? Não acreditava que fosse possível, mas, então, que sentimento era aquele?

Voltou a assobiar, acalmando o seu coração e distraindo-se com as flores ao seu redor.

Sentiu uma quente brisa passar por si, balançando os longos cabelos encarnados. Levantou a cabeça para o céu. Estava a escurecer. Levantou-se para ir para dentro. Uma das diversas ordens que o feiticeiro lhe dera, fora para estar dentro do castelo antes do pôr do sol. Não fizera qualquer pergunta e limitava-se sempre a cumprir o comando.

No entanto, nada a preparara para o que vira quando se voltou. O feiticeiro aproximava-se, com as roupas normalmente impecáveis, cheias de vincos e desalinhadas — somente as calças negras escapavam. Trazia nos braços um vestido verde, com adornos dourados. Era simples, mas lindo. Com um tule brilhante na longo saia, que cintilava mesmo com os fracos raios solares.

— Ele… é… para mim?

Aproximou-se, tocando no tecido delicado. Era macio ao toque. As mangas eram longas e largas a partir do cotovelo e, ao pegar-lhe, conseguiu perceber como a renda dourada rodeava a gola que lhe descobria o ombros. Virou-o e pode ver como um laço dourado que adornava a parte de trás, rodeando-lhe a cintura com uma fita.

— Pensei que talvez gostasses de o usar ao invés das minhas roupas.

A jovem sorriu, emocionada com o seu gesto. Não esperava um ato tão gentil da sua parte. Obrigou-se a conter as lágrimas, mas não pode evitar o brilho no seu olhar.

— É verdade, mas as suas roupas também não são desconfortáveis.

Levantou um dos braços, fazendo pender a longa manga amarelada, antes desta deslizar pelo braço. Deu uma volta sobre si mesma e riu-se com a sua figura ao observar-se com atenção.

Os seus cabelos encarnados, roçaram ao de leve no braço do feiticeiro quando rodou. Apesar da forte cor, tão forte como as suas chamas, estas não magoavam ninguém. Nem mesmo a ele.

— Estão mais alguns no teu quarto. — Lyla encarou-o com as bochechas rosadas.

— Obrigada. Eu… Eu não sei como agradecer.

O feiticeiro limitou-se a olhar o céu e a franzir o sobro sem lhe responder. Não queria agradecimentos, necessitava somente de se abrigar.

— Vai chover. — Lyla olhou para trás, vendo como as nuvens se aproximavam. — E tu tens de ir para dentro.

— Sim. — As nuvens pareciam carregadas. — Parece que vem aí outra tempestade.

— Isso significa que te vais embora?

Encarou-o, incrédula com a pergunta, vendo-o devolver-lhe o olhar. Por que achava ele uma coisa daquelas? Continuava a não querê-la ali? Limitou-se a esboçar um pequeno sorriso, virando-lhe as costas para observar as flores que baloiçavam ao sabor do vento.

— Realmente seria engraçado ir-me embora num dia de tempestade, já que cheguei num.

— Não foi essa a minha pergunta. — As palavras saíram duras, mais do que ele desejava.

— Irei partir em breve, prometo.

— Isso não responde…

— Eu não quero ir! — gritou, levantando a cabeça para o céu alaranjado.

Fora a primeira vez que a ouvira gritar ou mudar o tom de voz para consigo, o que surpreendeu a própria Lyla. Nunca o fizera, mas, naquele momento, nem as lágrimas conseguiu evitar.

Ela tinha um sonho.

Secou a face apressadamente com o punho da camisa.

O feiticeiro estendeu a mão para lhe tocar, para tentar entender o que se passava, mas baixou a mão e recuou.

Ele não tinha nada.

Sentiu um formiguei nos dedos. Fora a primeira, apesar de saber perfeitamente o porquê.

Valeria a pena tocar-lhe, sabendo o seu destino?

Talvez ambos já tivessem o que queriam.

Lyla passou por ele a correr, de cabeça baixa, entrando no castelo. O feiticeiro pensou em impedi-la, exigir-lhe explicações… Talvez desculpar-se.

Helena S. Moreira

Escritora e autora do livro “Coração de Diamante” e Novela “Feiticeiro das Chamas: Capitulo 1, 2, 3 e 4

Imagem Por, Francisco Goya, “The Milkmaid of Bordeaux [La lechera de Burdeos]” (Museo del Prado)

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