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Às vezes pesam-me todos os dias que já vivi, como um prisioneiro que arrasta uma bola de ferro presa a uma corrente.

Outras vezes sinto-os leves, tão leves, como uma pena que se solta de uma ave em pleno  voo.

É primavera. Estou deitada e é primavera. Metade do corpo tapado e metade descoberto  que a Primavera é mesmo assim. É ainda de manhã. É domingo. Estou ainda deitada numa  manhã de domingo.

Estranho, este momento. Num segundo estamos a dormir e no outro estamos acordados.  Quer dizer, nem sempre ficamos bem acordados quando deixamos de dormir. Quantas  vezes temos noção do corpo, mas não sabemos mais nada? Onde estou? Que dia é hoje?  Nunca me aconteceu, mas há quem duvide até de como se chama, que idade tem. Que a  idade é um marco temporal que deixa de fazer sentido à medida que o tempo passa. Vinte  e três anos. Trinta e quatro anos. Quarenta e sete anos. Como quarenta e sete se ainda  ontem tinha dezassete, vinte e seis. Não, não pode ser. Alguém se enganou. Ou se calhar  fui eu que me enganei. Talvez. Quando me olho no espelho… O meu corpo acompanha  a minha idade. Essa, que dizem que tenho. A minha cabeça não. Não, a minha cabeça não  sabe a minha idade. E não é porque se tenha esquecido, longe disso, a minha cabeça está  muito bem, obrigada, jamais se poderia esquecer de tal coisa. Só que ela sabe que não  pode ter passado tanto tempo. É tempo demais.

E depois há o resto. A minha vontade. A minha vontade não tem a idade que o meu corpo  me diz. A minha vontade tem muito menos anos. Tudo o que quero fazer agora, tudo o  que sonho fazer no futuro precisa de mais anos do que aqueles que o meu corpo tem para  me dar. Dez. Dez anos a menos. Pelo menos. E digo dez apenas por respeito ao espelho.  Não o quero chamar de mentiroso, que é muito feio acusar a mentira, mesmo quando é  verdade. Mas não quero que o espelho se zangue comigo, mais do que parece já ter-se  zangado.

Mas voltemos aquele momento estranho. Sim, aquele outro talvez ainda mais estranho.  Agora estamos acordados, agora estamos a dormir. A lucidez num momento, a total  ausência no outro. Uma espécie de ignorância em que nos deixamos ir para mundos que  não controlamos. Somos nós que os produzimos. Fazem parte do que somos, vivem e  alimentam-se do que vivemos, do que vemos e ouvimos, mas não os controlamos. E  vamos e vamos. Todas as noites. Não importa a estação. Há quem diga que o calor  potencia os sonhos. Que graça! Há quem diga tanta coisa… E o frio, não? O frio, o calor,  a Primavera, o Outono, o que interessa? Não controlamos esse mundo dos sonhos e todas  as noites nos entregamos a ele, como um adicto se entrega à substância do seu vício. Não  temos outra hipótese. Pois não, não temos, é verdade. Não temos outra hipótese. O sono  é a insulina dos vivos. Não temos outra hipótese.

E mudava alguma coisa se a tivéssemos? Ponha o dedo no ar quem escolheria deixar de  sonhar. Para sempre. Tinha de ser para sempre. Se escolhêssemos deixar de sonhar nunca mais iríamos poder acordar e dizer, nem imaginas o que sonhei hoje! Deixaríamos de  poder discutir se sonhámos a cores ou a preto e branco. Se o mundo que construímos – que o nosso sub-consciente construiu -, era uma comédia ou um filme de terror. Nunca  mais trocaríamos as caras, os nomes e os lugares. O Manel, a Maria e o Luís não nos  tornariam a aparecer com a cara do António, da Luísa e do Joaquim. Agindo como o  Manel, a Maria e o Luís agiriam, mas com outras caras. Noutros corpos que não os deles.  Só que no sonho nós não sabemos que os corpos não são aqueles, porque o que nós  sabemos é o que está por dentro. E não é tão curioso que seja assim? Nos sonhos as caras  não importam, é a essência que importa. O nosso inconsciente sabe o que o nosso  consciente teima em não querer reconhecer.

O nosso consciente é estúpido. Quem não quer aprender com quem sabe é estúpido. Só  quem não quer aprender é estúpido.

Se olhássemos para a essência quando estamos acordados, como olhamos quando estamos  a dormir, seriam menos os enganos. Ah! quantos desgostos, quantas desilusões  poderíamos evitar se olhássemos para a essência quando estamos acordados. Nós  sabemos. No fundo, nós sempre sabemos. Mas disseram-nos um dia que era a razão que  fazia sentido. Disseram-nos “somos os únicos animais racionais, façamos uso disso” e  nós achámos que fazer uso disso era esquecer tudo o que sabemos, mas que a razão não  diz. Chama-se instinto. E depois acontecem os sonhos. Que o que sabemos e não usamos  tem de ser expurgado. E tem de vir à nossa razão, a ver se lhe dá algum juízo. Só que às  vezes vem de forma metafórica. Sim, “já que a razão é tão esperta, ela que decifre isto  que eu tenho para lhe dizer”, diz-nos o sub-consciente. E mais das vezes a razão afinal  não é assim tão esperta e o que acontece é que os sonhos nos baralham ainda mais. Acho  que é nesses dias que acordamos e não sabemos que dia é, nem onde estamos. Nos dias  em que o sub-consciente brinca demasiado connosco. Nos põe à prova no limite. Como  se tivesse pegado na nossa massa cinzenta e a tivesse posto a centrifugar. Que ideia! O  cérebro a centrifugar. Mas parece, não parece? E depois andamos assim o dia todo.  Amarfanhados. Que ninguém se preocupou em sacudir-nos e estender-nos a ver se  ganhamos forma outra vez. Se as moléculas se organizam outra vez. No caso, os  neurónios. Se nos vamos lembrando do sonho, vamos esticando um pouco o tecido. Com  sorte acabamos o dia a precisar só de um pouco de ferro.

E depois há os outros dias. Aqueles em que surge tudo de repente. O sonho entra-nos pelo  consciente e vemo-lo todo. E aquilo que parece ter durado a noite inteira, afinal conta-se  em um segundo e meio. Mas foi tão longo e tão intenso, e conta-se num segundo e meio.  E se não o contamos logo, depois já não o contamos, porque ele foge para o mundo dos  sonhos esquecidos que é um lugar onde nunca ninguém foi.

Porque raio me fui lembrar disto tudo? Assim, ainda deitada numa manhã de domingo.  Metade do corpo tapado e a outra metade descoberta, que a Primavera é mesmo assim.  São como as cerejas, os pensamentos. Costuma dizer-se das conversas, mas também vale  para os pensamentos. Vem um, vem outro, vem outro. Quando damos por nós  começámos a pensar no peso dos dias e acabámos no lugar dos sonhos esquecidos. Talvez  tenha tudo que ver. Que sei eu?! Sei que o segundo pensamento foi para os dias que me  são leves, mas sobre esses não me detive. Devia tê-lo feito, não era? Devia ter agarrado  nesse pensamento e tê-lo seguido. Dar-lhe um fio condutor, levar o pensamento para lugares felizes. Mas não. Prometo fazê-lo para a próxima. Pode até não ser Primavera,  nesse dia. Pode ser Inverno, que no Inverno também há dias leves. E até há dias em que  podemos ter metade do corpo tapado e a outra metade descoberta. Depende dos dias. E  dos Invernos. Depende dos dias de Inverno. Felizmente, hoje é Primavera.

Por: Joana Kabuki (Escritora)

Imagem Por, Louis Valtat, “Cherries

4 thoughts on “Os Pensamentos são como Cerejas

  1. Como me identifico com este texto!
    A minha idade mental nunca acompanhou a minha idade física, não me identifico com ela.
    É certo que as vezes o espelho diz, estás a ver??? Tens mesmo esta idade (no espelho as vezes os anos parece que caem de repente sem eu dar conta).
    Mas não é a primeira, nem será certamente a ultima vez, que me baralho e pergunto ao marido (por preguiça de fazer contas) eu tenho x ou x idade?
    Goza comigo é claro, mas eu ando sempre atrasada nestes números e todos os anos é uma surpresa quando chega perto do meu aniversário perceber que afinal vou celebrar mais primaveras do que me recordava (ahhhh não vou contar aqui os molhos de anos que já tenho, porque tenho primeiro de me mentalizar que tenho já MESMO esta idade 😀 )
    Afinal não sou a única, pensava que eu era diferente, e que me sentia a mesma garota adolescente quando já devia (segundo dizem) ter idade para ter juízo e se calhar até tenho juízo, para continuar a aproveitar a vida sem pensar se tenho ou não idade para isto ou para aquilo.

    1. O dito, “A idade é só um número” revela-se muita das vezes verdade; muitas são as pessoas que não se identificam ou se recordam da idade que têm.

      Quando certos sentimentos perderam em nós, não há nada melhor do que ter um poema do nosso lado; deixo-la então, com este poema do W. B. Yeats, ‘Quando Fores Velha’:

      Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono,
      Dormitando junto à lareira, toma este livro,
      Lê-o devagar, e sonha com o doce olhar
      Que outrora tiveram teus olhos, e com as suas sombras profundas;

      Muitos amaram os momentos de teu alegre encanto,
      Muitos amaram essa beleza com falso ou sincero amor,
      Mas apenas um homem amou tua alma peregrina,
      E amou as mágoas do teu rosto que mudava;

      Inclinada sobre o ferro incandescente,
      Murmura, com alguma tristeza, como o Amor te abandonou
      E em largos passos galgou as montanhas
      Escondendo o rosto numa imensidão de estrelas.

    2. Acho que esse último pensamento é o mais acertado: não pensar se temos ou não idade seja para o que for. Se o coração disser que está certo, estará de certeza 😉

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