Dentro desta sala grande e brilhantemente branca, a luz refletida do bisturi que tenho encostado à garganta bate contra a única placa metálica que faz de mesa.
Queres saber como raios cheguei a estar nesta situação querido leitor? Preso contra o chão deste laboratório, com o peso de um homem com mais de 80 quilos em cima de mim, sem quase poder respirar? Para isso temos de recuar cerca de 5 mil anos, para o momento em que tudo isto começou. Sim, não leste mal, querido leitor, já tenho mais de 5 mil anos, o momento em que decidi ser criogenizado.
*
Era um dia cheio de sol, que representava perfeitamente o meu estado de humor. Dirigia-me pela grande e movimentada rua para o meu laboratório no topo de um dos mais modernos e fabulosos arranha céus. Apesar de existir tanta gente na rua, o edifício estava quase vazio, não encontrando ninguém quer pelos corredores como pelo elevador principal que utilizei para chegar à minha sala. Mas também não era isso que me importava, justo pelo contrário, quanto menos gente encontrar, melhor. Estas pessoas que são como um vírus para o nosso adorado planeta, dentro de pouco começarão a desaparecer… Pois para isso é a minha amada investigação!
O meu laboratório estava exatamente igual a como eu o tinha deixado. Tenho como regra proibir a entrada desses vírus no que é o meu lugar de existência.
Justo em frente de mim estão as câmaras criogénicas que tem uma cobertura de vidro, pequenos cilindros de alumínio e metal cheios de tubos que saem e entram de diferentes compostos orgânicos e químicos que me permitirão entrar num sono profundo. Todas as minhas planificações estavam prontas, só faltava finalizar o sérum que ajudaria na melhoria deste nosso planeta.
Sentei-me na minha cadeira frente ao microscópio que estava sobre a grande placa metálica que fazia de mesa. Só faltava juntar um composto orgânico e ver a reação celular para averiguar se o meu sérum estava completo. Então assim o fiz… E para nenhuma surpresa, poucos segundos após colocar aquele composto, as células de dentro da minha amostra começaram a multiplicar-se incontrolavelmente. Um enorme sorriso apareceu no meu rosto.
Eu sou um génio, eu sei!
Com uma pipeta retirei parte daquele sérum e coloquei-o numa planta. Ela rejuvenesceu ficando mais forte e mais verde. Injetei outra parte do sérum num dos ratos brancos que estavam na gaiola sobre a minha mesa. E fiquei a observar. O efeito era lento, mas notório. Em poucos minutos os olhos desse pequeno animal mudaram de cor e ficaram ainda mais sangrentos, o seu comportamento era mais agressivo atacando toda a população de ratos que estava dentro da gaiola. Ficando, no final, só ele sozinho enquanto limpava o seu pequeno focinho. Mais uns minutos foram necessários antes dos defuntos ratos se voltarem a levantar e ficar da mesma maneira que o primeiro. Fantástico! Perfeito!
Preparei 100 vacinas e guardei o resto do sérum dentro de um frasco, escondendo-o dentro de uma das câmaras criogénicas, ativando o seu temporizador para dentro de 5 mil anos. Repentinamente alguém bateu à porta do laboratório. Era uma jovem cientista que cumpria todos os estereótipos de um cientista nerd, mais um exemplo dos vírus que iriam desaparecer.
— O que precisas agora!?
— O jo-jovem grupo de p-pessoas que pediu está agora a in-ingressar no complexo.
— Perfeito. Direciona-os para o meu laboratório e não me voltes a dirigir a palavra. Detesto ouvir o som da tua voz.
— S-Sim senhor.
Não era capaz de perceber nem a mais simples das ordens. Que desespero… Ainda bem que todo este sofrimento está quase a acabar. Todos os inúteis e inservíveis vírus que habitam neste meu planeta, desaparecerão, deixando só os mais finos exemplares à minha espera para a sua salvação e redenção. Já faltava pouco, pensei suspirando de alívio.
Alguns minutos mais tarde ela voltou a aparecer dentro do meu laboratório com uma amostra de 100 vírus. Todos olhavam para mim.
— Bem-vindos ao começo de uma nova geração! Hoje será administrado um sérum nas vossas veias. Esta será a cura que o planeta precisa para todas as doenças existentes e a sua salvação! Agradeço o vosso espírito voluntário e independente por se terem inscrito a ser os primeiros a receber esta bênção.
Todos aplaudiram perante o meu discurso superior.
— Tu! Começa a administrar todas as vacinas que estão em cima da mesa, uma para cada pessoa aqui presente. Todos os que receberam a sua dose podem ir embora logo a seguir.
Vi, pelo canto do olho, como ela assentiu e começou a trabalhar no que eu tinha ordenado. Sempre com um ritmo frustrantemente lento. O trabalho fica melhor feito quando o faço, mas nego-me a tocar nesses pequenos vírus. Comecei a aprontar a câmara criogénica que cuidaria do meu sono, e uns minutos depois ouvi uma pequena e irritante voz detrás de mim.
— S-Senhor, já todos os voluntários foram v-vacinados.
Voltei-me para ela enojado pela sua presença.
— Então, que raios ainda estás a fazer aqui?
Ela baixou a sua insignificante cabeça, começando a murmurar algumas palavras que não se entendiam.
— Creio que não entendeste o que eu te disse, outra vez. DESAPARECE DA MINHA VISTA!
Levantou a cabeça rapidamente e correu pela porta fora. Pelo menos uma coisa que faz bem, fugir. Espero que essa habilidade não melhore muito.
Olhei pela última vez pelo grande vidro que fazia de parede no meu laboratório. Conseguia, de onde estava, ver toda a cidade. Uma cidade suja e cheia de vírus. Com milhões de carros e edifícios a estragar o ecossistema de um fabuloso planeta. Algo que iria mudar em breve.
Subitamente um grande estrondo fez-se ouvir por todo o edifício, o som de gritos e pessoas a correr ecoavam por todo o lado. O meu momento tinha chegado. Entrei na câmara criogénica, fechei a tampa e suspirei com um grande sorriso. Nesse instante a pequena e inútil fugitiva entrou a correr pelo meu laboratório. Bateu com os punhos fechados sobre a tampa da minha criação, que chatice. Mas dentro em pouco tudo acabaria. Um elemento da minha amostra entrou lentamente no meu laboratório, derrubando a mesa e indo de encontro com a pequena inútil. Sem muita força a cabeça dela foi separada do resto do corpo, esguichando sangue sobre a minha câmara criogénica. Que fantástica última visão…
Senti a minha consciência desaparecer e adormecer num sono profundo.
O que me pareceu ser, segundos mais tarde, voltei a acordar. A tampa da minha câmara criogénica estava limpa, sem rastros da minha última visão. Abri-a lentamente para ver o meu laboratório completamente limpo e desinfetado. As outras câmaras criogénicas tinham desaparecido, e só existia a placa metálica a fazer de mesa, nada mais. Olhei para o topo da câmara, tinha instalado um contador anual para saber em que ano despertaria do meu sono. Estava no ano 7024, a minha invenção tinha conquistado o tempo e eu tinha dormido cerca de 5 mil anos sem sofrer nenhum problema. Este é um dos cúmulos da ciência moderna!
Dirigi-me lentamente para a parede de vidro e olhei para a nova paisagem. Não encontrei nenhum vírus e tudo estava coberto de heras, mimosas, albízias e entre outras que eu não reconhecia completamente. A minha missão tinha sido completada!
— Vejo que já acordaste do teu sono.
Olhei para a porta de saída, sítio de onde saía mais uma voz irritante que eu pensei não ouvir tão cedo.
— Deves estar a perguntar-te quem sou eu, é normal. O meu nome é Maximiliano, e para te introduzir ao tema rapidamente vou dar-te uma visão geral do que se passa. Há alguns milhares de anos um vírus devastou quase toda vida humana na terra. Alguns de nós conseguimos fugir e reproduzir-mo-nos. Ninguém sabe ao certo como isto começou, mas após encontrar-te fechado nessa coisa, todos pensamos que serias a salvação da vida humana. Decidimos começar a cuidar de ti, pois não conseguíamos abrir essa coisa. Pouco a pouco também apareceram colónias humanas em sítios remotos. Mas uma grande tragédia abateu-se sobre nós há alguns meses. Havia outra dessas coisas ao teu lado que se abriu antes, mostrando um frasco com um líquido estranho. Algumas colónias juntaram-se para saber o que raios era isso. Num pequeno descuido, esse líquido foi derramado, transformando muitos de nós e acabando por matar-nos. Ainda assim, todos esperavam que pudesses acordar para dar uma resposta lógica a tudo o que está a acontecer e uma solução para o problema que vivemos.
O pequeno espurco parou de falar… dando a perceber que tinha acabado a sua explicação. Enquanto falava, ele aproximava-se da mesa pegando num bisturi e olhava-me atenciosamente.
Em resposta a tudo o que tinha dito, comecei a gargalhar.
— Por que razão iria ajudar a solucionar a situação que eu criei? Quando tudo correu perfeitamente!
Inesperadamente, ele abalançou-se sobre mim, encostando o bisturi à minha garganta.
*
— Depois do acontecido com o líquido sabia que tu tinhas alguma coisa a ver com o que tinha acontecido! Não prestas!
— Podias passar o teu tempo a aprender insultos mais originais e elegantes do que “não prestas” … Se pensavas que eu chegava até aqui sem nenhum planeamento do que aconteceria, és mesmo uma coisa inútil e inocente…
Sem muitas mais palavras, retirei uma arma de choque do bolso da minha bata e acertei nas suas costelas. Fazendo-o tremer e sair de cima de mim. Pouco após levantar-me, aumentei a potência da arma para cem por cento e voltei a apontá-la contra o seu pescoço. Ele nunca mais se voltaria a mexer…
Imagem “Robert Koch em seu laboratório [Robert Koch in seine Laboratorium]”
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